Estio
Gosto
do verão. Gosto verdadeiramente – declaradamente, convictamente, mesmo
apaixonadamente – deste tempo em que o calor começa a abrasar, os cheiros das
plantas e das flores se intensificam e o céu permanece, durante uma larguíssima
parte do dia, revestido por um azul forte e aberto. Mais ainda : vejo (e colho)
vantagens de todos pretensos inconvenientes que, em regra, são associados a
esta altura do ano. Por um lado, uns bramam:“Morre-se
de calor” (estiola-se, podia
dizer, para relacionar o corpo do texto com o título). No meu caso, sinto-me
rejuvenescer. Outros clamam: “Sentimo-nos
tontos, zonzos, apáticos, ensonados, com pouca vontade de trabalhar, moles”.
Pois bem, eu sinto-me mais enérgico do que em qualquer outra altura do ano. Há
ainda os que reclamam “Custa-nos horrores
adormecer com esta temperatura. Acordamos de hora a hora ensopados em suor”.
A minha pessoa, caros leitores destes Prazos,
repousa placidamente enquanto os termómetros galgam os 35 graus. Nem Goa, nem
Roma em agosto (obviamente, sem ar condicionado, que é sistema de que jamais
senti falta), nem a doce torreira conimbricense depois do almoço, quando uma
brisa discreta nos traz um calor que cheira a deserto (o que contribui,
paradoxalmente, para aumentar a minha produtividade) beliscam este meu
metabolismo que – se não fosse igual ao do meu pai e irmã – se poderia dizer
que estava irremediavelmente danificado ou, pelo menos, descalibrado.
- Você tem sangue
mulato?, perguntaram-me uma vez em Goa, quando me viram,
placidamente embora provocando em redor uma lagoa de suor, em pé, às 2 da
tarde, desenhando no moleskine pormenores
das telas da capela-mor da igreja de S. Francisco. Não, que eu saiba, não
tenho. No entanto, gerações e gerações de Mellos, Motta-Veigas e Cabrais
oscilando entre Seia, Celorico e Coimbra, todas elas terras ardentes entre
julho e setembro, devem ter produzido esta carapaça. Ao que importa juntar
outra enfiada de avoengos Pedroso de Lima a repartir a vida entre a quente Lusa-Atenas e a quase árida (para a
maioria; agradável, para mim) Poiares estival (o plateau da Risca-Silva, segundo recordava o meu Avô, sem cursos de
água, era um teste à resistência de qualquer um – e há PLs por lá desde o séc.
XVI) e, naturalmente, o sangue do Brasil nordestino, dos sertões do Ceará, onde
quem sofre excessivamente com raios solares dardejantes… sucumbe! Por tudo
isto, creio bem – eu, que em genética sou um autêntico zero – que esta
apetência pela canícula resulta de uma (a meu ver, feliz) conjunção de
cromossomos e alelos.
Acho,
até, que é por me sentir tão bem quando imerso neste banho de ondas solares
que, em regra, não sofro de qualquer inclinação pelos estratagemas
habitualmente empregados para o combater, como sorvetes e bebidas geladas.
Julho e agosto fora, bebo água à temperatura ambiente e quando me sinto um
bocado encalorado, chá quente (como sempre me ensinaram a fazer). Duches frios
também me parecem ser uma coisa um bocado tonta: se forem tépidos (todos os que
moram em climas quentes o sabem), funciona melhor. Em compensação, o verão é a
época de alguns dos meus pratos preferidos: eu sou positivamente capaz de
viver, se tal não me acarretasse uma série de aborrecimentos físicos, seguindo
uma dieta à base de gaspacho – gosto imensamente daquilo! – saladas frias e
pudins frios. Mais ainda: é o tempo de duas das especialidades culinárias das
minhas Avós: a lagosta fingida do
lado paterno; o peixe-de-carne do
materno! E é o tempo dos gins (esses
sim, querendo-se bem gelados) à varanda e das sangrias.
Este
ano, o estio chegou tarde, mas parece ter vindo com uma pujança da qual
desesperadamente necessitávamos num país, onde, até há alguns dias atrás, o
tempo dava mostras de estar conluiado com o clima de abatimento que se palpa em
cada esquina. Sem a boa dose de energia solar a que estão acostumados, Portugal
e os portugueses mais pareciam ir naufragando inelutavelmente num oceano
juncado de pessimismo, sem esperança – nem euros na algibeira, para enfrentar uma
despesa imprevista – de alcançarem qualquer ilhota onde pudessem voltar a acalentar
expetativas mais risonhas.
Não
se caia, contudo, na falácia fácil de acreditar que os raios de sol tingem tudo
de esperança e otimismo. É verdade que ajudam a encarar o futuro com outro
ânimo, mas nem mesmo um julho ofuscante consegue encobrir alguns sinais que nos
preocupam a todos. Em Leiria – onde me acho de momento, a braços com a correção
de frequências e, daqui a uns dias, exames (as larguíssimas dezenas de
relatórios já estão despachados há uma semana, para meu grande alívio, que já
não suportava ler com o necessário empenho e abertura de espírito muito mais
linhas sobre o tratamento jurídico das minorias e casos no âmbito da relação
direito e desporto) – as lojas “caem que
nem tordos”, como costuma dizer o meu Pai. Tudo, mas literalmente tudo,
está a ameaçar fechar portas. Na minha rua (perdão, avenida!), poucos são os
resistentes: o café, o talho do sr. Hélder (que agora vende já mais artigos do
que carne e seus derivados), o cabeleireiro Kika, uma frutaria e uma escola de
condução. De novo, apenas abriu uma loja de venda de tabaco, com um ar um tanto
suspeito devido às montras de vidros fumados e ao secretismo de que tudo aquilo
se parece revestir. Por todo o centro da cidade, desde a Marquês de Pombal à
Nova Leiria, multiplicam-se os cartazes repetindo, incessantemente, vende-se, arrenda-se, trespassa-se.
Várias lojas apresentam dísticos informando os potenciais clientes estarem
encerradas “para balanço”, advertindo
que reabrirão “o mais rapidamente
possível”. Até eu, distraído como sou, já percebi que é peta: o tal balanço
mais não é do que um suave eufemismo para se desocupar o espaço.
Infalivelmente, àqueles cartazes seguir-se-á um outro dizendo qualquer coisa do
género: Arrenda-se. 300 m2. Boa exposição
solar. Facilidades de financiamento.
Alguns
destes estabelecimentos que vão sucessivamente desaparecendo fazem-me falta: é
menos confortável, para mim, uma Leiria sem uma Pilar de Los Libros onde
comprar o jornal e trocar meia dúzia de frases (e que hoje, a título de recuerdo, me ofereceu um dos livrinhos
mais conservadores que eu folheei nos últimos tempos, uma velha seleção de
escritos de D. Miguel Sotto-Mayor, feita pelo João Ameal), ou sem uma Leiripack para lavar os olhos em artigos
de escritório e desenho. E custa ver lojas que não frequentava, mas que
emprestavam um ar do cosmopolitismo possível à urbe, como a-da-rapariga-de-Fátima-que-nem-desenha-mal-mas-que-pede-preços-absurdos-pelos-retratos-que-pinta-(500
euros!), com as suas molduras caras e vistosas, encerrar portas e, quiçá,
serem substituídas por um penhorista irritante que “quer comprar o meu ouro, sobretudo aquele que já não uso por ter
passado de moda” (o que levanta três problemas, desde logo: (i) eu não uso ouro; (ii) eu não tenho nada de ouro; (iii) eu sei lá como é que se vê que o
ouro passou de moda??!).
No
entanto, o encerramento que mais me impressionou nos últimos tempos não ocorreu
em nenhuma das cidades por onde costumo andar: Coimbra, Leiria e Lisboa, mas
sim na remota e pacatíssima Quiaios onde gosto de passar férias, numa agradável
vida de ócio à beira-mar. Lá, fechou a padaria – negócio que, confesso, pensava
que jamais dava prejuízo! Far-me-á falta, admito, a vinda da carrinha do pão,
todas as manhãs, desde Quiaios-vila até Quiaios-praia. Conheço a velhota que
assegurava aquele serviço há anos infindos e – coisa extraordinária – ela persistia
em falar comigo como se eu dominasse a complicada teia de parentescos da gente “da vila”. Eu, que apenas lá passo de
bicicleta e paro para ir à farmácia, à papelaria ou à junta. Nem precisava de
lhe dizer o que queria: “Ora já vieram?
Bons olhos o vejam! Então a partir de agora são dois pães de sementes e mais
dois de cada tipo, não é?”.
Diabo…
onde irei, doravante, comprar os meus pães para o pequeno-almoço, sentindo o
cheiro forte do mar na manhã?? E onde o irão fazer todos os outros que, tal como
eu, se dirigiam à velha carrinha branca (estacionada sempre perto da peixaria –
“para um migalho de conversa com a dona quando
não há clientes, para trocar notas e para ir à casa-de-banho”, explicava a
padeira, sempre desembaraçada) – a fim de se abastecerem para o dia que começava?
Mesmo aquele velho sinistro e horrivelmente magro que, invariavelmente, na sua
voz ciciante (com a qual tanto gozávamos) pedia (mas não os devia comer, pois
continuava esquelético, ano após ano):
-
Eu queria dois croissants. Dos de creme
de ovos, por favor.
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