Novas (?) formas de pobreza
Há
um par de dias, em pleno almoço, enquanto nos achávamos a medir meças com as
pernas de um pato mutante (segundo a Teresa, que invocava o tamanho do bicho
como justificação da suposta, se bem que inexistente, dureza do mesmo), o meu
Pai contou uma historieta interessante. No hotel onde costuma ir de vez em
quando ter dois dedos de conversa com as pessoas da sua geração que lá se
encontram para colocarem as novidades em dia, são presença regular duas
senhoras (que o meu progenitor praticamente desconhece). Ora, essas manas (são
irmãs, as tais frequentadoras costumeiras do espaço) vivem ambas num
apartamento da zona central da cidade onde residem os meus Pais (cujo nome
começa em “Sol”… e acaba em “m”), que passa por ser um dos bairros mais
tradicionalmente pretendidos da urbe, numa casa que não tem água nem luz (!!).
Isto é, habitam num dos epicentros das vaidades mondeguinas, num prédio pelo
qual muitos pagariam generosamente para ter um apartamento, ao lado de gente
que (presumivelmente, e apesar de tudo) passa confortavelmente, em condições
que temos sequer dificuldade em imaginar. Mais ainda: deslocam-se diariamente
ao referido hotel – que também não prima por ser dos mais chãos da cidade –
onde tomam o seu chá, carregam os telemóveis (convém que o façam lá, uma vez que em casa tal hipótese
está-lhes obviamente vedada) e, ocasionalmente, encomendam uma refeição
ligeira. Bem postas e convenientemente arranjadas, passam desapercebidas
naquele espaço e no bairro onde moram. Nada seria, na verdade, mais normal do que duas senhoras, já de
alguma idade, fazerem esta rotina casa-hotel, hotel-casa… desde que (pequeno
pormenor que nada tem de insignificante) dispusessem dos confortos mínimos na
sua habitação.
Quando
o meu Pai aludiu a tão insólito episódio, houve um silêncio brevíssimo mas
constrangedor à mesa. Afinal, aquela história bizarra passava-se a meia dúzia
de portas adiante, na rua perpendicular à nossa. E (para mim, pelo menos) a
atmosfera ridente do meu querido bairro pareceu ter escurecido – apenas momentaneamente,
é certo – um tudo-nada. A sala confortável, as pilhas de livros por todo o
lado, as velhas chávenas encavalitadas, ao monte, nos louceiros, o pato assado
pela Teresa, pareceram, num fugaz segundo, menos garantidamente brilhantes.
Claro está que, um átomo depois, todos começámos a disparar questões que nos
começavam a martelar o cérebro e a avançar com as respostas mais plausíveis
(ainda que muitas nos parecessem quase inacreditáveis):
-
Como lavarão a roupa?
- Pedirão aos vizinhos?
- Não pode ser! Não o
podem fazer constantemente: era indelicado e os vizinhos ou achavam que elas
estavam loucas, ou que se queriam aproveitar descaradamente da máquina alheia,
ou descobriam a verdade e denunciavam-nas!
- Será que se pode
denunciar alguém por não
ter água e luz em casa?
- Eu acho que não!
- Eu acho que sim! E,
já agora, também acho que o pato está ótimo, Teresa!
- Eu acho que depende…
- Lá está! Nim
jurídico, always the same!
- Não, nada disso! Acho
que depende de a casa ser ou não arrendada. Se for arrendada, não podem manter
a água e luz cortadas…
- Ora, porquê?
- Porque isso danifica
os canos e prejudica gravemente o imóvel, claro!
- Hummmmmm….
- E como farão com o
condomínio?
- Lá está: se for
arrendada, não há esse problema!
- Mas se não for?
- E para tomar banho? Ou
mesmo para lavar os dentes?
- Menino, tem de ser
com uma chaleira…
- E a água para a
chaleira? Não há aqui chafarizes para a irem lá buscar!
- Há as fontes do
jardim…
- Mas essa água não é
para beber!
- E é da câmara… não é?
Era um roubo à câmara!
- Olhe que disparate:
os cidadãos não roubam nada à câmara: era um bem que a autarquia lhes
proporcionava.
- Ia ser uma coisa
linda: dupla maluca vai abastecer-se a fonte pública em plena S_____!
- No entanto, isso não
tem lógica: se não têm dinheiro para pagar a conta da água, andar a comprar
sempre garrafões é uma despesa grande!
- Talvez tomem banho no
hotel, depois do chá!
- Oh Mãe, a Mãe acha
que sim? Seria o cúmulo!
- O que é mais fácil?
Viver sem água ou sem luz?
- Água!
- Luz!
- Nada disso! É mesmo
água!
- Sem luz não há
aquecedores para o inverno!
- Usas cobertores! Mas
sem água não os podes sequer lavar, nem os lençóis!
- Blergh! Realmente!
E
assim sucessivamente…
No
entanto, e para além desta abordagem ligeira do acontecimento, que até serviu
para animar o almoço e não caiu mal com o pato, outra, mais lúgubre, se oculta.
Este é, seguramente, mais um dos (decerto muitos) casos de pobreza escondida
que, cada vez mais, proliferam no nosso país. Discretamente, onde menos se
espera, na porta ao lado da do casal de universitários ou do médico com a sala
de jantar locupletada de prataria, alguém agoniza com falta de recursos. E
podem tratar-se tanto de situações bastante caricatas, como as que narro
(afinal, as senhoras em questão encaram a situação com alguma leveza) como de
casos verdadeiramente dramáticos. E – o que é mais dramático ainda – sem que
ninguém dê por eles, uma vez que a atmosfera de generalizada abastança que os
rodeia, apesar de permitir aos protagonistas uma aura de decência, os encobre
fatalmente. São os sinais dos tempos,
pode-se argumentar – e é verdade. A vida está difícil para todos, e todos
(enfim, quase todos) nos vemos
obrigados a contar os tostões. Contudo, é radicalmente diferente saber que o
temos de fazer mas que, quando regressarmos a casa, podemos tomar um banho
quente e comer pato assado num ambiente confortável, ou, pelo contrário, termos
noção que, para lá do cenário enganador do bairro e do prédio, nos espera um
apartamento inóspito, escuro e sem água. Estes relatos lembram-me sempre duas
velhas histórias que ouvi contar vezes sem conta. Uma delas é a de um velho
tabelião aposentado, e remonta à Seia da infância da minha Avó. Família
respeitável, não podia dar mostras da extrema penúria a que tinha chegado, a
qual se espelhava na miserável dieta que se viam compelidos a seguir. Acordavam
todos tarde para não tomar o pequeno-almoço (sempre era uma refeição a menos)
e, ao almoço e jantar, muitas vezes comiam couves com batatas – afinal, o que o
quintal produzia – cozinhadas por uma velha e fiel criada. Em regra, havia
também um par de ovos, que se reservavam para o velho notário. Outra é a de
duas primas muito velhotas (e divertidas por serem bastante insólitas) que
viviam numa casa antiga sita numa terra nos arredores de Coimbra. Os seus nomes
compridos, o facto de uma ser viúva de magistrado (que já tinha morrido há
imenso tempo), a sua atitude um bocadinho snob,
a biblioteca afamada, as salas e quartos decorados com móveis antigos e bonitos
não impediam que lhes chovesse em cima das camas D. Maria. Provindas de uma
época em que se gostava e fazia gala em receber, iam convidando os parentes
para o jantar. No entanto, fossem apenas elas duas à mesa, ou mais dez pessoas,
a quantidade de comida apresentada era sempre a mesma, pois o orçamento não
esticava. Já se sabia: antes de sair de casa, cada um jantava previamente ou,
pelo menos, comia um par de sandochas. Nada se dizia, mas tudo se subentendia.
Seria
desejável que estes casos aviltantes tivessem desaparecido de vez com o
progresso que, nas últimas décadas, a europa e o país têm registado. No
entanto, basta um par de anos de crise para estes velhos fantasmas regressarem.
Não há certezas nem mesmo nos melhores hotéis e bairros, nas casas mais bonitas
e mais ricamente decoradas: por detrás dessa aparente fartura, pode grassar a
fome e a penúria.
1 Comments:
aposto que adivinho quem disse: "Será que se pode denunciar alguém por não ter água e luz em casa?" ahaha
agora a sério, é um problema assustador, que a maioria não vê ou prefere fingir que não vê...
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