Wednesday, April 24, 2013

O reflexo de "O Espelho"




No passado mês de novembro, Lisboa foi sacudida (se muito ou pouco intensamente, já depende da perspetiva de cada um) pela saída do primeiro número de uma publicação que pretendia – e continua a pretender segundo creio, pois julgo que a equipa que a idealizou deseja de alguma forma dar continuidade à iniciativa – agitar as pacatas águas do nosso viver nacional: “O Espelho”. Contando com um punhado de colaboradores despachados e bem-intencionados (entre os quais o meu primo R.), sob a tutela de nomes conhecidos da nossa praça (e eu não posso, naturalmente, deixar de referir PVG), “O Espelho” – folha que tem graça e sentido de oportunidade – desde cedo escolheu algumas bandeiras para desfraldar em prol da sua causa. Uma delas foi o testemunho de um jovem português que passou por França ao qual emprestaram o nome (que penso ser fictício) de Miguel. Miguel, apresentado como futuro de uma Europa sem rumo, náufrago da triste realidade em que a nossa União nos estaria (ou está) a lançar. Li com atenção o depoimento de Miguel, simpatizei com as suas perspetivas, acredito ter compreendido as apreensões, os medos e as limitações que o coagem. No entanto, achei Miguel um fraco. Tal como tendo a achar todos aqueles que com ele se perfilam num coro de lamúrias em vez de reagir. Por vezes, gostava que o Miguel pusesse os olhos no .
O , é verdade, beneficiou de inúmeros privilégios de que o Miguel – infelizmente, porque a sociedade continua a ser injusta – não teve oportunidade de gozar: uma família grande e coesa, pais que se dão bem, dinheiro suficiente para encarar o mundo com a necessária segurança, possibilidades de estudar e de se cultivar tanto quanto quisesse. No entanto, isso não lhe bastou: é que, ao contrário do Miguel, o cedo descobriu ter uma marcada vocação para algo – jogar rugby. Mas… como jogar rugby a sério numa pasmacenta cidade de província sita num país tão periférico como o nosso? As hipóteses de sucesso eram escassíssimas e, tal como o Miguel, o sabia não poder errar, “ter de jogar sem falhas” – e jogar, aqui, significa saber fazer as apostas corretas quer no campo, quer na gestão da carreira. E foi assim que o , mal começou a adquirir alguma autonomia (que só alcançou graças aos esforços perseverantes em ser cada vez melhor numa área para a qual era, naturalmente, muito apto), voltou costas à pacata cidadezinha e rumou para Lisboa. Terá sido tudo fácil? Certamente não, mas valeu a pena. Nessa altura, o levava no bolso vontade de vencer, o 12º ano feito e a opção de não entrar logo na universidade. E, por vezes (ai, ai, o padrinho penitencia-se), é quase tão difícil o descendente de uma família onde a tradição universitária é grande recusar dar esse passo como o rebento de uma estirpe onde tal costume não exista lograr pleno sucesso no ensino superior. Pouco tempo esteve, porém, na capital: o , sabendo perfeitamente que mesmo a nossa maior cidade era demasiado estreita para os horizontes largos que almejava, cedo principiou a planear o passo seguinte. E esse passo foi Narbonne. E o – que podia, afinal, ter-se limitado a ficar por Lisboa, chorando a mediocridade do desporto nacional e a sua desdita em nascer português e europeu – meteu meia dúzia de coisas (entre as quais, certamente, uma bola de rugby) num saco e rumou a França. Ah! Esqueci-me de dizer: não sabia falar francês. Isso demoveu-o? É óbvio que não – onde melhor podia aprender a língua do que lá? O Miguel fala em saudades, o prefere apostar na esperança; o Miguel chora benesses perdidas, amizades interrompidas, o Zé, mesmo quando as coisas parecem estar a correr mal, tem imensa vontade em saber o que os próximos dias, semanas e meses lhe reservam. O Miguel aparece com olhos de carneiro-mal-morto na sua foto de “O Espelho”, o enche páginas de jornais desportivos!
Dá vontade de dizer, a um e a outro:
- Miguel, põe os olhos no e deixa de ser fiteiro!
- , tem paciência para com o Miguel, mas não te deixes arrastar pelo seu triste fado e pelo seu semblante mortiço. Miguéis, há-os às resmas, um pouco por todos os cantos: já os Zés são, infelizmente, muito mais raros.
Eu tenho a sorte extrema de ser o orgulhoso padrinho de um deles!
Muitos parabéns ZG!



Tuesday, April 23, 2013

Em Mordogonddo com a Zabi



Os maratas
Pataratas
Nunca conquistarão
Pondáaaa!

Cantamos às vezes eu e a minha sobrinha Zabi (bom, desafino eu, porque a Zabi ainda não percebe bem, nos seus menos de três anos, o significado da maior parte das palavras da cantilena) quando subimos ao monte de Mordongoddo – ou seja, o último lance de escadas que levam ao sótão. Lá em cima estará a fortaleza inexpugnável que os inimigos jamais recuperarão, pois marchamos em direção à mesma com todo o alento possível. Por isso, o nosso cântico de guerra dá-nos ânimo! No entanto, uma vez transposto o último degrau, Mordongoddo e os seus maratas de turbantes e cimitarras esfumam-se para dar lugar a um castelo onde os passos ecoam nos vastos corredores e onde uma porta fortíssima e praticamente inexpugnável nos barra a passagem. Esta fronteira tremenda (a qual, na realidade, mais não é do que uma banalíssima grade de ferro) só abre com a ajuda de uma chave mágica, a qual funciona apenas durante três tentativas: se as falharmos todas, corremos o sério risco de nunca conseguirmos passar para o lado de lá – esse espaço que, só pelo simples facto de estar , nos parece ser irresistível. Esforçamo-nos, compenetrados, o portão cede e abrimo-lo como se pesasse arrobas e rangesse nos gonzos: devagar, muito devagar, pois o esforço exigido é quase titânico. Mas, posto o pé para lá desta barreira, o castelo medieval desaparece, e surge-nos uma ampla pista de corrida! Reta, magnífica, a pedir que a percorramos aceleradamente até cruzarmos a meta, onde uma bandeira já acena. Parece um corredor banal, pois parece, mas nós sabemos perfeitamente que se trata de uma pista quase olímpica: e lá parte a Zabi, acelerando rumo ao troféu! Chegamos enfim à entrada do nosso arrumo (um percurso que, na verdade, se faz em menos de um minuto), mas este depressa se transforma na porta do apartamento da Fernanda – sim, da Fernanda, a amiga da Júlia-que-mora-na-garagem-mas-nunca-está-em-casa-quando-lá-vamos (e que, por acaso, apesar de ser mulher, usa os sapatos que, num canto, o meu Pai conserva para quando o arrasto em incursões agrícolas a Poiares). Será que a Fernanda está? Talvez não, é domingo… Mais vale bater, chamar por ela.
Fernandaaaaa!, grita a Zabi, estás aí?
Como a Fernanda não responde, mas é nossa amiga (até nos deu a chave de casa!), atrevemo-nos a entrar. E que apartamento extraordinário ela tem! Não sabemos muito bem o que faz para viver, mas há várias possibilidades: pode ser costureira (caso contrário, para quê tantas caixas de lãs e tantas roupas arrumadas um pouco por todo o lado, que só podem ser de clientes que ainda as não vieram buscar?), pode ser música (há uma viola esquecida num canto, não há?), pode ser secretária-arquivista, ou mesmo professora (e por isso todos os cantos estão repletos de papel e livros), pode ser body-boarder… Certo é que deve viajar muito, caso contrário não precisaria de tantas malas como as que acumula num dos cantos de sua casa. Na verdade, tem TANTAS que até costuma emprestar-me um trolley para eu levar para Leiria. Descoberto o trolley, dedilhada a guitarra desafinada, e como a dona da casa tarda em chegar, decidimos ir embora. Voltaremos noutra altura, à espera de termos sorte e de a encontrarmos. Mais uma corrida pela pista que se nos abre à frente até que paramos, subitamente, face a uma porta maior do que as outras. Lá dentro mora uma máquina que deve trabalhar de noite, pois está a dormir (nós sabemos porque a ouvimos ressonar), por isso é melhor não fazer muito barulho para não acordarmos a coitada.
Num ápice estamos nas escadas, e mais depressa ainda estas se transformam numa pradaria do Texas onde temos de nos mover silenciosamente, resguardados por enormes rochedos e alguns arbustos esparsos… os índios estão à espreita, e não sabem que somos amigos: todas as cautelas são poucas! E deste modo, com mil precauções, deixamos as américas para nos encontrarmos de novo na Solum, encarando o nosso bem conhecido elevador. No entanto, ele não é um elevador qualquer… como poderia ser??! É mágico, e temperamental: só funciona se carregarmos MUITO DEPRESSA no botão. Caso demoremos o dedo um segundo mais do que devemos, resmunga e tarda em chegar. Mas a Zabi é certeira, e em regra o sr. Elevador nunca se atrasa quando ela o chama.
E assim chegamos a casa, sãos e salvos, incólumes depois de uma viagem intercontinental e de tão arriscadas aventuras!
Poucas coisas há – creio bem – mais frustrantes do que a falta de imaginação. O que pode ser mais castrador do que não conseguir ver para além do que é físico e palpável? Quão negra não será a prisão em que vivem (por vezes, imersos num incompreensível orgulho) agrilhoados os que se recusam a partir para além da mediana e morna realidade quotidiana. É-me difícil imaginar que alguém, quando assim o deseje (pois o viver em permanência num universo paralelo parece-me também ser política muitíssimo desaconselhada!), não consegue vislumbrar uma savana em vez de quatro degraus, uma catedral no lugar de um arrumo escuro, uma praça de touros no meio de uma sala de jantar. São pessoas sensatas, essas – poder-me-ão dizer. E eu não vou questionar o discernimento sensaborão de semelhantes personagens. Mas… porque serão assim? Em que momento se converteram nesses profundos poços de pragmatismo? A que se deve tal metamorfose (uma vez que criança alguma nasce dessa maneira)? Cada vez mais me convenço que é por não lerem. E quando falo em hábitos de leitura, não me refiro aos que apenas declaram consumir clássicos (a minha mana tinha um colega insólito que afirmava ler somente Dostoevsky), ou apenas se debruçam sobre obras profundíssimas, ou se perdem de amores somente por livros técnicos. Nada disso: reporto-me muito claramente aos que não têm o costume (altamente salutar, a meu ver) de ler. E ler é ler tudo o que pudermos, sem preconceitos (mas sabendo, claro está, delimitar aquilo de que gostamos, e investindo sobretudo nesses domínios), sem necessidade de o fazermos por obrigação, conselho ou emulação. Ler, tão-somente isso, o que nos vem à mão, o muito que está por aí disponível, sabendo que, felizmente!, nunca teremos tempo para concluir tão gigantesca tarefa! Ah! E nunca deixando de procurar instigar os outros a fazer o mesmo, desde logo para que a sua imaginação não mirre e definhe num deserto de ponderada sensatez. Porque se cada vez mais Zabis encararem a banalíssima tarefa de acompanhar o tio ao sótão para irem buscar a mala que se vai usar nesse dia no regresso a Leiria como algo minimamente interessante – e para isso basta pôr a sua criatividade em ação – o mundo será um lugar menos banal.
E que bom leitor gosta de coisas banais? :P




PS: chama-se a atenção dos leitores destes Prazos para as palavras amáveis que uma amiga e colega (de doutoramento e da blogosfera) escreveu sobre eles em http://nosmeusalfarrabios.blogspot.pt/2013/04/homenagem-monteiro-lobato-no-dia.html?spref=fb

Monday, April 08, 2013

DESCULPE, MAS...


Terminado o intermezzo oriental e ultrapassadas as principais festividades pascais – este ano muito húmidas, negando-nos o prazer de escondermos ovos no jardim para a Zabi os procurar – é tempo de retornar à normalidade. E, para mim, fazê-lo passa também por retomar alguns velhos hábitos e práticas leirienses, postos de parte durante estas últimas semanas. Voltar pisar (por vezes com fúria, depois de um ponto estupidamente alienado pelo péssimo perdedor que sou…) os courts do CETL, a ir tomar café e comprar pães brasileiros ao sítio do costume, a rever a Pilar de Los Libros com a sua conversa fácil, um tanto incoerente e divertida (que anima qualquer neura histórico-jurídica e garante a descompressão necessária após a correção de um maço de provas) – onde comprar o “Público” nunca é uma experiência igual à do dia anterior –, reencontrar Dona Gina na sua frutaria digna de Almodóvar e recheada de produtos interessantes (“Mas o senhor leva sempre a mesma coisa!” – lamenta-se a proprietária, desfiando o já velho e conhecido rosário das compras semanais “Tomates, por vezes um pepino, pêras, maçãs e laranjas para fazer sumo!”), passear pelas livrarias da terra, reabastecer o stock de raivas e outros biscoitos quejandos junto do Vasco das ditas (raivas), queixar-me das minhas maleitas na farmácia Sanches, ir cheirar as cada vez mais surradas velharias da loja que foi da D. Adélia… e passar pela biblioteca municipal. Gosto particularmente da biblioteca desta terra, que é pequena mas dinâmica, com um grupo de funcionários que, sem ser especialmente trabalhador, demonstra gostar do que faz, é solícito e despachado q.b. e, a partir de determinada altura, já quase nos trata como velhos conhecidos. Para mais, o fundo disponível é surpreendentemente bom – o que, como me comprometi solenemente, nestes tempos de crise tremenda em que todos temos de apertar o cinto vários furos abaixo do que estávamos acostumados, a reduzir o volume de livros comprados por mês, se tem vindo a revelar uma surpreendente ajuda no sempre difícil desincentivo de adquirir só mais aquele volume, porque parece ser tão interessante, e tão útil, e depois vai desaparecer e eu nunca mais o vejo, sobretudo quando já tiver euros suficientes na carteira para voltar a pensar em tal coisa.
Ora, se alguém – com muito pouco com que se entreter, admita-se – se dedicasse a pesquisar as obras que vou requisitando na dita biblioteca, poderia ficar um pouco confuso. Não há, na verdade (forçoso é admiti-lo) um fio condutor: tão depressa levo um manual de missionologia do padre Silva Rego como romances do Camilo (continuam a ser um excelente antídoto contra o stress e os momentos de alguma angústia que a todos assaltam), tudo à mistura com os inevitáveis livros em torno das três letrinhas apenas que me obcecam (G-O-A!), com reedições do Lopes Vieira, histórias da literatura, monografias sobre Macau, e sei lá eu mais o quê. Uma enorme confusão com que gosto de encher as noites chuvosas desta terra chuvosa. Por assim ser, quando, há um par de dias, recém-chegado da Índia, bem-disposto com o mundo e já com saudades das minhas aulas e das minhas “crianças”, em pleno processo de retoma dos tais hábitos leirienses e a propósito da requisição de uma revista qualquer sobre Macau, tive de indicar o ano do meu nascimento (1978), não estranhei DEMASIADO ao ser confrontado com esta pergunta, por parte da funcionária:
- Desculpe… mas tem mesmo 35 anos?
- Como disse?
- Peço desculpa, mas nasceu realmente em 1978? Tem MESMO 35 anos?
- Sim… respondi, procurando dar outro rumo à conversa: É um belo ano, não é?
- Eu peço realmente muitas desculpas – repetia a rapariga – mas ninguém diria!
Foi nesta altura que a vaidade me subiu um pouquinho à cabeça, com os resultados catastróficos que sucedem sempre que alguém se deixa inebriar por ela. Aaha – pensei, estupidamente – aposto que vais dizer que ninguém me dá essa idade, e que é incrível eu ler o que leio sendo tão novo, e interrogar-te como é que sou assim tão extraordinariamente brilhante etc etc…Vãs ilusões, caros leitores destes Prazos, vãs ilusões… A resposta não tardou, e foi dura como um balde cheio das mais gélidas águas do Lis:
- É que eu NUNCA diria! Então tem a minha idade! Eu também nasci em 78… e imaginava que o senhor era MUITO mais velho!
SPLASH!!! na minha pobre cabeça! E novo SPLASH!! – de águas frígidas, mas agora do Lena – ao pensar que a bibliotecária, apesar de ser uma rapariga simpaticíssima é (e juro que é verdade; não se trata do despeito a falar, nem de qualquer indício de demência senil precoce!) vesga, de dentes tortos, ar de geek e tem várias dezenas de quilos a mais do que devia. Ah! E naquele dia usava um PONCHO!
Pois, Luís, pois… SPLASH!!!