Em Mordogonddo com a Zabi
Os maratas
Pataratas
Nunca conquistarão
Pondáaaa!
Cantamos
às vezes eu e a minha sobrinha Zabi (bom, desafino eu, porque a Zabi ainda não
percebe bem, nos seus menos de três anos, o significado da maior parte das
palavras da cantilena) quando subimos ao monte de Mordongoddo – ou seja, o último
lance de escadas que levam ao sótão. Lá em cima estará a fortaleza inexpugnável
que os inimigos jamais recuperarão, pois marchamos em direção à mesma com todo
o alento possível. Por isso, o nosso cântico de guerra dá-nos ânimo! No
entanto, uma vez transposto o último degrau, Mordongoddo e os seus maratas de
turbantes e cimitarras esfumam-se para dar lugar a um castelo onde os passos
ecoam nos vastos corredores e onde uma porta fortíssima e praticamente
inexpugnável nos barra a passagem. Esta fronteira tremenda (a qual, na
realidade, mais não é do que uma banalíssima grade de ferro) só abre com a ajuda
de uma chave mágica, a qual funciona apenas durante três tentativas: se as
falharmos todas, corremos o sério risco de nunca conseguirmos passar para o
lado de lá – esse espaço que, só pelo simples facto de estar lá, nos parece ser irresistível. Esforçamo-nos,
compenetrados, o portão cede e abrimo-lo como se pesasse arrobas e rangesse nos
gonzos: devagar, muito devagar, pois o esforço exigido é quase titânico. Mas,
posto o pé para lá desta barreira, o castelo medieval desaparece, e surge-nos
uma ampla pista de corrida! Reta, magnífica, a pedir que a percorramos aceleradamente
até cruzarmos a meta, onde uma bandeira já acena. Parece um corredor banal,
pois parece, mas nós sabemos
perfeitamente que se trata de uma pista quase olímpica: e lá parte a Zabi, acelerando
rumo ao troféu! Chegamos enfim à entrada do nosso arrumo (um percurso que, na
verdade, se faz em menos de um minuto), mas este depressa se transforma na porta
do apartamento da Fernanda – sim, da Fernanda, a amiga da
Júlia-que-mora-na-garagem-mas-nunca-está-em-casa-quando-lá-vamos (e que, por
acaso, apesar de ser mulher, usa os sapatos que, num canto, o meu Pai conserva
para quando o arrasto em incursões agrícolas a Poiares). Será que a Fernanda está?
Talvez não, é domingo… Mais vale bater, chamar por ela.
- Fernandaaaaa!,
grita a Zabi, estás aí?
Como
a Fernanda não responde, mas é nossa amiga (até nos deu a chave de casa!),
atrevemo-nos a entrar. E que apartamento extraordinário ela tem! Não sabemos
muito bem o que faz para viver, mas há várias possibilidades: pode ser
costureira (caso contrário, para quê tantas caixas de lãs e tantas roupas arrumadas
um pouco por todo o lado, que só podem ser de clientes que ainda as não vieram buscar?),
pode ser música (há uma viola esquecida num canto, não há?), pode ser
secretária-arquivista, ou mesmo professora (e por isso todos os cantos estão
repletos de papel e livros), pode ser body-boarder…
Certo é que deve viajar muito, caso contrário não precisaria de tantas malas
como as que acumula num dos cantos de sua casa. Na verdade, tem TANTAS que até
costuma emprestar-me um trolley para
eu levar para Leiria. Descoberto o trolley,
dedilhada a guitarra desafinada, e como a dona da casa tarda em chegar,
decidimos ir embora. Voltaremos noutra altura, à espera de termos sorte e de a
encontrarmos. Mais uma corrida pela pista que se nos abre à frente até que
paramos, subitamente, face a uma porta maior do que as outras. Lá dentro mora
uma máquina que deve trabalhar de noite, pois está a dormir (nós sabemos porque
a ouvimos ressonar), por isso é melhor não fazer muito barulho para não
acordarmos a coitada.
Num
ápice estamos nas escadas, e mais depressa ainda estas se transformam numa
pradaria do Texas onde temos de nos mover silenciosamente, resguardados por
enormes rochedos e alguns arbustos esparsos… os índios estão à espreita, e não
sabem que somos amigos: todas as cautelas são poucas! E deste modo, com mil
precauções, deixamos as américas para nos encontrarmos de novo na Solum,
encarando o nosso bem conhecido elevador. No entanto, ele não é um elevador
qualquer… como poderia ser??! É mágico, e temperamental: só funciona se
carregarmos MUITO DEPRESSA no botão. Caso demoremos o dedo um segundo mais do
que devemos, resmunga e tarda em chegar. Mas a Zabi é certeira, e em regra o
sr. Elevador nunca se atrasa quando ela o chama.
E
assim chegamos a casa, sãos e salvos, incólumes depois de uma viagem
intercontinental e de tão arriscadas aventuras!
Poucas
coisas há – creio bem – mais frustrantes do que a falta de imaginação. O que
pode ser mais castrador do que não conseguir ver para além do que é físico e palpável? Quão negra não será a prisão
em que vivem (por vezes, imersos num incompreensível orgulho) agrilhoados os
que se recusam a partir para além da mediana e morna realidade quotidiana. É-me
difícil imaginar que alguém, quando assim o deseje (pois o viver em permanência
num universo paralelo parece-me também ser política muitíssimo desaconselhada!),
não consegue vislumbrar uma savana em vez de quatro degraus, uma catedral no
lugar de um arrumo escuro, uma praça de touros no meio de uma sala de jantar. São pessoas sensatas, essas – poder-me-ão
dizer. E eu não vou questionar o discernimento sensaborão de semelhantes
personagens. Mas… porque serão assim? Em que momento se converteram nesses profundos
poços de pragmatismo? A que se deve tal metamorfose (uma vez que criança alguma
nasce dessa maneira)? Cada vez mais me convenço que é por não lerem. E quando
falo em hábitos de leitura, não me refiro aos que apenas declaram consumir
clássicos (a minha mana tinha um colega insólito que afirmava ler somente Dostoevsky),
ou apenas se debruçam sobre obras profundíssimas, ou se perdem de amores
somente por livros técnicos. Nada disso: reporto-me muito claramente aos que
não têm o costume (altamente salutar, a meu ver) de ler. E ler é ler tudo o
que pudermos, sem preconceitos (mas sabendo, claro está, delimitar aquilo de que
gostamos, e investindo sobretudo nesses domínios), sem necessidade de o
fazermos por obrigação, conselho ou emulação. Ler, tão-somente isso, o que nos
vem à mão, o muito que está por aí disponível, sabendo que, felizmente!, nunca
teremos tempo para concluir tão gigantesca tarefa! Ah! E nunca deixando de
procurar instigar os outros a fazer o mesmo, desde logo para que a sua
imaginação não mirre e definhe num deserto de ponderada sensatez. Porque se
cada vez mais Zabis encararem a banalíssima tarefa de acompanhar o tio ao sótão
para irem buscar a mala que se vai usar nesse dia no regresso a Leiria como
algo minimamente interessante – e para isso basta pôr a sua criatividade em ação
– o mundo será um lugar menos banal.
E
que bom leitor gosta de coisas banais?
:P
PS: chama-se a atenção dos leitores destes Prazos para as palavras amáveis que uma amiga e colega (de doutoramento e da blogosfera) escreveu sobre eles em http://nosmeusalfarrabios.blogspot.pt/2013/04/homenagem-monteiro-lobato-no-dia.html?spref=fb
2 Comments:
:)
A Fernanda será descendente da bruxa das escadas da Costa Nova que, quando estava mal-humorada, não nos deixava abrir a porta? ;-)
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