Tuesday, April 23, 2013

Em Mordogonddo com a Zabi



Os maratas
Pataratas
Nunca conquistarão
Pondáaaa!

Cantamos às vezes eu e a minha sobrinha Zabi (bom, desafino eu, porque a Zabi ainda não percebe bem, nos seus menos de três anos, o significado da maior parte das palavras da cantilena) quando subimos ao monte de Mordongoddo – ou seja, o último lance de escadas que levam ao sótão. Lá em cima estará a fortaleza inexpugnável que os inimigos jamais recuperarão, pois marchamos em direção à mesma com todo o alento possível. Por isso, o nosso cântico de guerra dá-nos ânimo! No entanto, uma vez transposto o último degrau, Mordongoddo e os seus maratas de turbantes e cimitarras esfumam-se para dar lugar a um castelo onde os passos ecoam nos vastos corredores e onde uma porta fortíssima e praticamente inexpugnável nos barra a passagem. Esta fronteira tremenda (a qual, na realidade, mais não é do que uma banalíssima grade de ferro) só abre com a ajuda de uma chave mágica, a qual funciona apenas durante três tentativas: se as falharmos todas, corremos o sério risco de nunca conseguirmos passar para o lado de lá – esse espaço que, só pelo simples facto de estar , nos parece ser irresistível. Esforçamo-nos, compenetrados, o portão cede e abrimo-lo como se pesasse arrobas e rangesse nos gonzos: devagar, muito devagar, pois o esforço exigido é quase titânico. Mas, posto o pé para lá desta barreira, o castelo medieval desaparece, e surge-nos uma ampla pista de corrida! Reta, magnífica, a pedir que a percorramos aceleradamente até cruzarmos a meta, onde uma bandeira já acena. Parece um corredor banal, pois parece, mas nós sabemos perfeitamente que se trata de uma pista quase olímpica: e lá parte a Zabi, acelerando rumo ao troféu! Chegamos enfim à entrada do nosso arrumo (um percurso que, na verdade, se faz em menos de um minuto), mas este depressa se transforma na porta do apartamento da Fernanda – sim, da Fernanda, a amiga da Júlia-que-mora-na-garagem-mas-nunca-está-em-casa-quando-lá-vamos (e que, por acaso, apesar de ser mulher, usa os sapatos que, num canto, o meu Pai conserva para quando o arrasto em incursões agrícolas a Poiares). Será que a Fernanda está? Talvez não, é domingo… Mais vale bater, chamar por ela.
Fernandaaaaa!, grita a Zabi, estás aí?
Como a Fernanda não responde, mas é nossa amiga (até nos deu a chave de casa!), atrevemo-nos a entrar. E que apartamento extraordinário ela tem! Não sabemos muito bem o que faz para viver, mas há várias possibilidades: pode ser costureira (caso contrário, para quê tantas caixas de lãs e tantas roupas arrumadas um pouco por todo o lado, que só podem ser de clientes que ainda as não vieram buscar?), pode ser música (há uma viola esquecida num canto, não há?), pode ser secretária-arquivista, ou mesmo professora (e por isso todos os cantos estão repletos de papel e livros), pode ser body-boarder… Certo é que deve viajar muito, caso contrário não precisaria de tantas malas como as que acumula num dos cantos de sua casa. Na verdade, tem TANTAS que até costuma emprestar-me um trolley para eu levar para Leiria. Descoberto o trolley, dedilhada a guitarra desafinada, e como a dona da casa tarda em chegar, decidimos ir embora. Voltaremos noutra altura, à espera de termos sorte e de a encontrarmos. Mais uma corrida pela pista que se nos abre à frente até que paramos, subitamente, face a uma porta maior do que as outras. Lá dentro mora uma máquina que deve trabalhar de noite, pois está a dormir (nós sabemos porque a ouvimos ressonar), por isso é melhor não fazer muito barulho para não acordarmos a coitada.
Num ápice estamos nas escadas, e mais depressa ainda estas se transformam numa pradaria do Texas onde temos de nos mover silenciosamente, resguardados por enormes rochedos e alguns arbustos esparsos… os índios estão à espreita, e não sabem que somos amigos: todas as cautelas são poucas! E deste modo, com mil precauções, deixamos as américas para nos encontrarmos de novo na Solum, encarando o nosso bem conhecido elevador. No entanto, ele não é um elevador qualquer… como poderia ser??! É mágico, e temperamental: só funciona se carregarmos MUITO DEPRESSA no botão. Caso demoremos o dedo um segundo mais do que devemos, resmunga e tarda em chegar. Mas a Zabi é certeira, e em regra o sr. Elevador nunca se atrasa quando ela o chama.
E assim chegamos a casa, sãos e salvos, incólumes depois de uma viagem intercontinental e de tão arriscadas aventuras!
Poucas coisas há – creio bem – mais frustrantes do que a falta de imaginação. O que pode ser mais castrador do que não conseguir ver para além do que é físico e palpável? Quão negra não será a prisão em que vivem (por vezes, imersos num incompreensível orgulho) agrilhoados os que se recusam a partir para além da mediana e morna realidade quotidiana. É-me difícil imaginar que alguém, quando assim o deseje (pois o viver em permanência num universo paralelo parece-me também ser política muitíssimo desaconselhada!), não consegue vislumbrar uma savana em vez de quatro degraus, uma catedral no lugar de um arrumo escuro, uma praça de touros no meio de uma sala de jantar. São pessoas sensatas, essas – poder-me-ão dizer. E eu não vou questionar o discernimento sensaborão de semelhantes personagens. Mas… porque serão assim? Em que momento se converteram nesses profundos poços de pragmatismo? A que se deve tal metamorfose (uma vez que criança alguma nasce dessa maneira)? Cada vez mais me convenço que é por não lerem. E quando falo em hábitos de leitura, não me refiro aos que apenas declaram consumir clássicos (a minha mana tinha um colega insólito que afirmava ler somente Dostoevsky), ou apenas se debruçam sobre obras profundíssimas, ou se perdem de amores somente por livros técnicos. Nada disso: reporto-me muito claramente aos que não têm o costume (altamente salutar, a meu ver) de ler. E ler é ler tudo o que pudermos, sem preconceitos (mas sabendo, claro está, delimitar aquilo de que gostamos, e investindo sobretudo nesses domínios), sem necessidade de o fazermos por obrigação, conselho ou emulação. Ler, tão-somente isso, o que nos vem à mão, o muito que está por aí disponível, sabendo que, felizmente!, nunca teremos tempo para concluir tão gigantesca tarefa! Ah! E nunca deixando de procurar instigar os outros a fazer o mesmo, desde logo para que a sua imaginação não mirre e definhe num deserto de ponderada sensatez. Porque se cada vez mais Zabis encararem a banalíssima tarefa de acompanhar o tio ao sótão para irem buscar a mala que se vai usar nesse dia no regresso a Leiria como algo minimamente interessante – e para isso basta pôr a sua criatividade em ação – o mundo será um lugar menos banal.
E que bom leitor gosta de coisas banais? :P




PS: chama-se a atenção dos leitores destes Prazos para as palavras amáveis que uma amiga e colega (de doutoramento e da blogosfera) escreveu sobre eles em http://nosmeusalfarrabios.blogspot.pt/2013/04/homenagem-monteiro-lobato-no-dia.html?spref=fb

2 Comments:

At 10:30 AM, Blogger Joanight said...

:)

 
At 1:29 AM, Blogger Teresa said...

A Fernanda será descendente da bruxa das escadas da Costa Nova que, quando estava mal-humorada, não nos deixava abrir a porta? ;-)

 

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