Horizontes abertos
“Quando
despachares a tese”, diziam-me vozes amigas, “verás que vais sentir um grande
vazio. Como se algo tivesse desaparecido e não soubesses fazer com todo o
espaço e tempo que te tomava”.
Quando
despachei a tese, não me senti nada assim. Dois dias depois teve lugar um
congresso que ajudei a organizar (correu muito bem, mas, como é da praxe,
exigiu a concatenação dos mais dedicados esforços de várias pessoas), ao que se
sucedeu uma pilha de frequências para corrigir e uma série de artigos cujas deadlines apertavam.
“No
momento em que terminares a defesa”, alertavam-me vozes solícitas, “serás
tomado por uma enorme angústia. E verás que durante meses ela jamais te
abandonará”.
Bom,
eu senti-me muito angustiado na
semana anterior às provas. Nos dias
seguintes, a ansiedade tirou umas férias e foi visitar outros hóspedes. E
espero que se demore muito tempo por essas paragens, que desejo serem bem
remotas.
“Assim
que estiver feita a defesa”, advertiam-me vozes solidárias, “estranharás
imenso: não se sente nada. Fica tudo exatamente igual!”.
Ora,
no meu caso, também estes oráculos falharam. E ainda bem, por melhor
intencionados que fossem.
O
que se sente quando se acaba um percurso tão longo e tão árduo? O que senti eu?
Nada
do que estava à espera, mas muito mais do que conjeturava. Como assim?
No
meu caso em concreto, o sentimento que associei (e associo) à defesa foi simultaneamente
o encerramento de um capítulo e o do regresso à normalidade – à minha normalidade.
Explico-me
melhor.
Atendendo
ao que será certamente uma estranha particularidade cerebral – que me acompanha
desde que me lembro –, tenho uma irresistível tendência a seccionar a vida como
se de uma fiada de blocos, ou episódios, se tratasse. Neste rosário, cada um tem princípio,
meio e fim, claro está, e alguns são bem mais agradáveis do que outros. Parte
deles são longuíssimos – espero mesmo alguns só terminem no dia em que, contristado,
lá me conformar a partir para outras paragens e deixar que guardem os meus
restos no jazigo de Poiares. Outros, efémeros. Há os que produzem recordações
ridentes e os que atiçam marcas dolorosas. Os que têm sequência mais ou menos
direta e os que correspondem a um final de caminhada. No entanto, todos partilham
de mesma singularidade: uma vez encerrados, na manhã seguinte ao fecho parecem
ter ocorrido há muito tempo. E ao longo dos dias que seguem, essa sensação de
distanciamento vai-se aprofundando de forma gradual, até se tornar abismal.
É
por esse motivo que, apesar de gostar muito de história e de estar mais de
metade dos meus dias a pensar em factos passados, não sou em regra nada
saudosista.
É
por essa razão que nunca senti que um ano fosse pior dos que o antecederam.
Pudera: os anos que passaram parecem-me remontar ao mesozoico!
É
por causa disso que creio ter aguentado anos e anos de trânsito louco e intenso
entre Lisboa, Coimbra e Leiria, vestindo e despindo alternadamente roupagens
diferentes e quase personagens distintas. Hoje professor, amanhã aluno, depois
investigador ou jurista tout court. E
sempre jurishistoriador devotado a Goa. Chegado numa quarta-feira ao fim da tarde
a Lisboa depois de uma bateria louca de aulas em Leira, acordava no dia
seguinte sentindo-me como se estivesse desde há muito na capital. Despertando
numa segunda-feira de manhã na cidade de Liz, prontíssimo para começar a aula das
8, a viagem horrível de expresso da noite anterior desde Coimbra parecia-me
coisa remota e brumosa.
Sendo
assim, fácil é de compreender que a defesa foi simultaneamente o dia do livro
cuja leitura terminou (pelo que há que começar quanto antes um outro, novo e
vibrante), o momento em que o derradeiro episódio acabou de ser transmitido, a
altura em que se deu a última pincelada e se assinou o quadro ou se firmou o
artigo entretanto enviado para o editor. Em regra, não costumo pensar muito
nesses desenhos e textos terminados. Recorro a eles e, naturalmente, fico
satisfeito quando agradam a alguém; mas dedico-me mais aos surgidos depois que
tenho entre mãos.
E
é tão, mas tão bom sentirmo-nos assim: com a sensação de trabalho feito,
expetantes e desejosos face ao que o futuro nos traz! No meu caso, reencontrei impressões
que se tinham mantido distantes desde o já longínquo 1996.
Em
paralelo, há o já referido gratificante regresso à minha normalidade. À medida que o tempo passa – será certamente um
sinal de velhice –, vou notando que duas características se avolumam. Por um lado,
sinto-me francamente mais tolerante para com as perspetivas dos outros (tal não
quer dizer, porém, que não as discuta – isso, creio bem, jamais acontecerá, e é bom sinal, pois só argumento em torno do que
me interessa e respeito). O que tem uma contrapartida eventualmente agridoce: estar
cada vez menos paciente para gente de vistas estreitas e horizontes alcantilados,
que recusa a curiosidade, a diferença e o debate. Por outro, sinto-me cada vez
mais à vontade com a minha maneira de
ver e de estar no mundo (o que desejo ardentemente que se passe com os que nos
rodeiam: o mundo é muito mais divertido e eficaz se todos e cada um de nós
formos genuinamente nós próprios). A autonomia que o fechar de ciclo
representado pela defesa acarreta também contribui, e muito, para isso.
Um
pouco como se tivesse deixado de ter de beber chá a contragosto, fazendo como outros faziam, por de
certa maneira estar obrigado a segui-los. Agora, se e quando alguém me perguntar:
-
Quer chá? Só temos chá preto. Sei que gosta.
Eu
poderei enfim responder:
-
Sim, obrigado. Mas peço-lhe o favor de lhe juntar um farrapo de leite. Mesmo
que mais ninguém queira.
-
Com certeza. E servido numa chávena mandarim
vinda numa bandeja de latão de Macau.
-
É isso mesmo! Perfeito! É bom estar de volta!
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