Dia da Criança
Nunca
liguei particularmente ao Dia da Criança, apesar de, sendo o mais velho dos
muitos primos de uma família numerosa, ter vivido sempre rodeado por elas. Acho
até um bocadinho tonto o folclore que se faz a propósito da data: de certa
maneira, lembra-me aquelas empresas em que se opta por organizar uma grande
festa anual para os trabalhadores em vez de melhorar as suas condições de
trabalho quotidiano.
No
entanto, é inegável que as crianças jogam um papel extraordinário na
nossa existência. Hoje, quando vinha do ténis, e depois de ter discutido um
pouco a utilidade efetiva da efeméride, pus-me a pensar na criança com quem
atualmente mantenho um contacto mais próximo. Isto é, a minha sobrinha Zabi, E
a verdade é que a Zabi desempenha uma função muito importante na vida do seu Tio
por várias razões. Quais?
Para
que desenrolemos à desgarrada contos longos e incoerentes:
- Começo eu. Era uma vez
uma menina…
- Chamada Chiara
- Chiara Renata
Ambrósia Sofia Ludmila Camila Teodora Adelaide Cipriana da Paixão Martins.
- Não Tio! Ninguém se
chama assim!
- Ora,
ninguém se chama Chiara.
- Chama sim. Ela é
Chiara Rita Joana Mariana. Só!
- da Paixão Martins. E
vivia na Ilha de Chorão, em Goa.
- Onde era pescadora.
- Nas margens do
Mandovi.
- E tocava viola, e
sabia todas as músicas da Violetta.
- E bebia chá todas as
manhãs.
- Misturado com Chocapic.
E Estrelitas! E M&Ms!
- E tinha um espelho.
- Que estava partido
porque um dia um monstro entrou em casa dela e partiu-o.
- E a Chiara ficou
muito zangada com o monstro, pois o espelho era bem antigo, do século XVIII e
de Veneza.
- E quis matar o
monstro.
- Mas o monstro afinal
era simpático e apenas se assustou quando se viu refletido no espelho. Ele não sabia
que era assim tão feio.
E na verdade vinha somente desafiar a Chiara para jogar ténis com ele… desde
que ela tivesse feito os trabalhos de casa antes, é claro.
- Mas a Chiara queria
ir ver o Frozen.
- Ver o
Frozen em vez de ir jogar ténis? Que
parvoíce! Que falta de gosto! O monstro nem queria acreditar!
Etc, etc, etc…(e
o facto de ambos gostarmos de desenhar ajuda a “dar corpo” aos personagens que
vão aparecendo).
Para
que o móvel faqueiro se transforme e deixe de servir apenas para arrumar coisas
– função pouco interessante à qual se prestam todos os seus congéneres. E que
um dos dragões “Henrique II” que ornam as suas portas se transmute em dragão da Zabi, que protege a porta da Zabi, a qual só pode ser aberta
com a mão ou graças à palavra-chave da
Zabi e onde se guardam alguns pertences da Zabi.
Para
que as escadas até ao sótão sejam os cerros de Pondá, e a todo o momento – em cada
patamar, atrás de uma qualquer porta, dissimulado por certa planta – esteja a
ameaça do marata que ataca ou dos ranes que até nem são más pessoas.
Para
que porta de ferro que protege o corredor do sótão se transforme numa penitenciária,
a Zabi em terrível guarda prisional e eu em pobre preso choroso que volta à sua
cela, sempre a tentar fugir da vigilante. Ou que o longo corredor se converta
em pista de corridas, de forma a acirrar a competitividade de ambos. Ou que,
munidos de uma lanterna, nos atrevamos a ir até aos confins do mesmo – lá ao
fundo, onde está escuro: o escuro que já não tememos, pois a luz que a Zabi
transporta transforma todos os monstros e receios em pó.
Para
que um simples chocolate esquecido no louceiro desde o Natal se transforme no
infeliz Pai Natal cativo de um chinês de teca e barriga protuberante que o
mantém debaixo de olho. Mas o Santa nada
tem a temer: os soldados e cavaleiros de um pote Satsuma seu vizinho depressa saltarão da porcelana para o vir
resgatar.
Para
que uma banal bandeja antiga e brilhante de latão da China se transmute num
espelho através do qual conseguimos falar com Macau. Ou a afegã de um quadro
pintado pela Avó da Zabi nos traga notícias frescas da Arábia e até dê umas
achegas sobre a vida do Menino Jesus (um tema que interessa sempre à Zabi).
Para
que as amêndoas da Páscoa se transformem em remédios. Mas cuidado com a escolha:
não se podem tomar demasiados, nem fazer misturas estranhas. A Drª Zabi é quem
prescreve.
Para
que a garagem fria se converta num cenário do Frozen e a Zabi na Elsa e na Anna (alternando constantemente entre
as duas) e eu – que nunca vi nenhum episódio daquilo – tenha de fingir que sou
o Olaf (que penso ser um boneco de neve).
Para
que os terraços sobre a garagem dos vizinhos se tornem numa casa e os Tios se
transformem nos filhos desordeiros da “mãe” Zabi – uma mãe severa, que quer que
a prole ande sempre em linha e não faça fita quando tem de ir visitar os primos
que moram no terraço – ups, casa! – seguinte.
Para
que a mesa de jantar se metamorfoseie na sala da Zabi no João de Deus, e por
artes mágicas apareçam os colegas da Zabi e esta se transmute ora na sua
professora, ora na funcionária da cantina, ora na porteira, ora em quem bem lhe
apetecer.
Para
que o canto ao lado da grande cómoda da entrada, onde a Zabi se gosta de
esconder, se transforme numa gruta escura e comprida, onde o som se ouve ao
loooooooonge e faz eco.
Para
que o velho baú da entrada se converta numa velha arca do tesouro que veio de
Seia. O problema é que nunca conseguimos descobrir a combinação encantada para
a abrir.
Para
que o chorão do jardim – que é a árvore preferida da Zabi – chore porque não
gosta nada que lhe cortem o cabelo, apesar de sempre que o fazem ele voltar a
crescer ainda mais bonito do que antes.
Para
que a Zabi, quando está zangada, não afete um ar de pouco amigos mas sim faça “cara
de Manuel Eduardo”. E tenho a certeza de que aquele velho Motta-Veiga, do alto
da sua moldura, exibindo a borla de lente de Teologia e as rendas de cónego da
Sé, sorri sempre que ela o faz. Tal como o Tio da Zabi, feliz pela sobrinha em
que também fervilha uma imaginação transbordante, que a partir do quotidiano
ordinário cria cenários extraordinários e que não parece ter vontade nenhuma em
ceder ao cinzentismo redutor e uniformizador que tanta gente anda por aí a
pregar como sendo fonte de excelsas virtudes.
Que
queira sempre dar o seu melhor, sempre inteira, sempre competitiva, sempre fiel a si mesma, nunca reduzindo
as coisas e as pessoas a uma vulgaridade chata e monótona. Seja agora em
criança seja quando for uma mulher adulta, feliz e despachada. E que jamais menospreze
a criatividade e o poder revigorante da imaginação – fundamental tanto para as
crianças como para os adultos … apesar de estes tantas vezes terem vergonha em o admitir.
1 Comments:
Maravilhoso. Fico muito feliz por perceber como as vossas tardes de 5a são proficuas.
Post a Comment
<< Home