Monday, April 13, 2015

Vinte anos

Quando a minha Mãe me lembrou de que no dia 14 de abril (hoje, portanto) se passavam vinte anos – duas décadas! – sobre a morte do Avô fiquei muitíssimo surpreendido. Por um lado, apesar de ter sido uma vintena preenchida e intensa, a verdade é que os anos parecem ter passado bem mais rapidamente do que poderia imaginar. Por outro, por ter conservado durante todo este período uma memória bastante fresca do Avô e, sobretudo, me lembrar dele com frequência.
Há uns tempos, ouvi a alguém que perdera bem mais recentemente um avô a estranha confissão de que se estava a esquecer da voz dessa pessoa. As lembranças que conservava iam-se esfiapando veloz e inexoravelmente, não obstante as tentativas que fazia para as preservar. Era como lutar contra uma maré pouco complacente: um esforço que se fazia a muito custo e se sabia de antemão ser inútil. Eu – provavelmente por ter uma alma mais simplória – nunca me debati com tais paradoxos. E reiteradamente me socorro – nas circunstâncias mais díspares – de alguns ensinamentos e dicas Avô me foi dando durante os meus primeiros dezassete anos de vida.
Querem alguns exemplos esclarecedores, de entre os muitos que poderia dar?
Todos conhecemos o crescente fértil, onde desabrocharam antigas e florescentes civilizações. É irrigado por quatro grandes e célebres rios: Nilo, Jordão, Tigre e Eufrates. Como localizá-los no mapa? O Nilo é "canja" e o Jordão facílimo para todos os que têm um mínimo de cultura católica (a minha deve bastante ao incentivo do Avô, já agora). Mas quando estão em causa o Tigre e o Eufrates, emoldurando a Mesopotâmia, já é mais complicado… Qual fica a oriente? Uma mnemónica simples resolve o problema: o Eufrates é, dos dois, o que se acha mais perto da Europa!
Portela, Ceira, Cabouco, Fundo da Lomba, Caneiro, Pomar dos Braços, Segade, Covelos, Ponte Velha (a terra da professora assassina!), Couchel, Vale de Vaz, Vila Chã, Santo André, Arraial das Necessidades, Risca-Silva. Quem conhece a região de Coimbra já percebeu perfeitamente a que me refiro: às localidades pelas quais se passa, Estrada da Beira fora, desde Coimbra até Poiares, mais concretamente até ao pequeno aglomerado de onde provinham alguns dos antepassados do Avô. Quando era miúdo e ia de carro com o Avô, recebia a incumbência de anotar num papel os nomes de todos os lugarejos que fossemos atravessando, para fixar designações e sequência. Eu gostava imenso destas incursões a Poiares, e creio bem que o facto de, vinte anos depois, ainda fazer o mesmo percurso com igual prazer não é de modo algum indiferente a tão amáveis recordações. Até hoje – e suspeito que durante as longas décadas que conto viver escrevinhando –, preparo cada ida e anoto escrupulosamente, em jeito de pequeno relatório, o resultado da digressão. Tal como o Avô fazia. Um par de décadas passadas, compreendo bem a razão de ser da prática: de outra forma, é absolutamente impossível não só lembrarmo-nos, entre duas idas a Poiares city, das mil e uma minudências que vão acontecendo relativamente aos metros quadrados que lá nos restaram, como ter uma noção de como a exploração dos mesmos foi sendo feita ao longo do tempo. Mensagens telegráficas e aparentemente misteriosas como “Serrazim: madeireiro continua a atrasar o corte. Se demorar mais um mês telefonar com ralhete. Cobrar renda? Ver se o pinheiro de Natal pegou”, ou “Onde é que acaba o Vale de Pereira??”, “Descobrir o valado a poente, que bate com a barroca do Grazina” ou ainda “O caseiro está velho e já não consegue fazer nada. Falou-me num homem chamado XXX, mas que todos conhecem por YYY (atenção, não o tratar por esta alcunha quando estiver a falar com ele: não gosta nada) que tem uma capinadeira. Preço de meio dia? Tentar que não sejam abusadores a pedir” acabam por se tornar auxiliares de memória imprescindíveis.
Os meus Pais moram hoje, em Coimbra, na casa que foi dos Avós. Ora, antes de o condomínio se ter rendido à iluminação inteligente que apareceu entretanto e dá imenso jeito, eu jamais acendia a luz do hall para abrir a porta de casa. Às vezes quem estava comigo irritava-se e reclamava: Mas que parvoíce essa! Andas a poupar eletricidade, é? Eu encolhia os ombros (mentalmente, caso contrário ainda apanhava uma bofetada) e explicava: O Avô é que me ensinou desde sempre a fazer assim. Alegadamente, era uma forma de estar preparado para quando faltasse a luz … Coisa que, que eu me lembre, nunca aconteceu.
Sabiam que santa Felicidade era criada de santa Perpétua? Ou quem é santa Comba de Coimbra? Ou qual a razão pela qual são Roque anda acompanhado por um cão? E o que fez Olímpio Nicolau Rui Fernandes, o tal que deu nome a uma rua de Coimbra? E quem eram os rivais jesuíta e pirata? Parte significativa do que sei quer em matéria de história religiosa quer sobre as ruas e tradições da minha terra natal deve-se ao estímulo inicial dado pelo Avô, também conimbricense. Mas os inúmeros conhecimentos que me foi passando não se limitaram a estas temáticas pias e antigualhas locais. O Avô era professor de agronomia e foi graças a isso que pude tantas vezes ir ver os muitos animais que, quando era pequeno, havia na Escola Agrícola. E comecei a respeitar as árvores e plantas de uma forma que provavelmente não faria se o Avô não chamasse constantemente a atenção. E a ter preocupações ecológicas (ainda que sempre menos do que devia, como bem alerta a minha Mana, que herdou essa veia do Avô). Mais ainda: foi graças ao Avô e ao meu Padrinho que perdi – ou pelo menos controlei – um dos temores irracionais que tinha na infância. O medo do universo. Quando era miúdo, gostava de olhar para as estrelas, mas apenas enquanto adorno celeste: identificar as constelações, achar que tornavam o céu mais bonito durante a noite, saber meia dúzia de trivialidades sobre a estrela polar, coisas assim… Mas aterrorizava-me a ideia da pequenez do mundo perante a imensidão do cosmos, bem como a insignificância que a Terra representava naquele teatro de gigantes que eu mal conseguia entrever. Tinha receio de que qualquer representante de vida alienígena pudesse efetivamente aparecer (uma coisa são os filmes, outra a realidade) e a ideia de que o sistema solar um dia morreria era-me muito desagradável… porque, enfim, ainda que faltassem milhões de anos, estava convencido de que a nossa família continuaria a existir e de que era uma injustiça esses remotos descendentes perecerem de forma tão horrível. E o que é que aconteceria às coisas? (é escusado, eu sempre fui um zeloso defensor da propriedade privada desde que me lembro). Se hoje continuo a gostar de olhar para as estrelas e já não sinto (tanto…) um desconforto a trepar pela espinha quando me sinto ínfimo sob a abóbada celeste, devo isso também ao Avô.

Conservo, como é natural, várias recordações físicas do Avô. Para além dos inúmeros papéis, livros e fotos que deixou, guardo um punhado de objetos mais pessoais, como o seu relógio ou a pasta de curso. Quando os vejo, lembro-me – naturalmente - ato imediato do Avô. Mas não preciso de os contemplar para me recordar da sua voz. Nem tenho de preocupar-me com a hipótese de o esquecer. E mesmo que tal acontecesse, que o passar dos anos fosse corroendo sem dó as memórias que conservo, o facto de parte da minha maneira de ser se dever à influência do Avô faz com que tudo isso fosse bastante irrelevante. Um punhado de meras e tontas preocupações de lana caprina, como diria a minha professora de latim do Dona.

Thursday, April 02, 2015

Relaxando entre cacos velhos



Mal entro, o dono avança em minha direção, de gorro (inexplicável, atendendo à temperatura) e com os seus gordos braços abertos:
- Senhor doutor, que prazer revê-lo!
E, voltando-se para uma rapariga que se espapaça num canapé (filha ou sobrinha, penso de imediato):
- O senhor doutor é um cliente regular, um cliente fiel, mas tem andado ausente, muito ausente…
Para logo depois passar ao ataque, tornando a enfrentar-me:
- Não tem vergonha de estar tanto tempo sem aparecer? Há meses e meses que não o vemos por aqui!
Balbucio uma desculpa: os horários desencontrados, o excesso de trabalho, a quase permanente ausência da cidade.
- Pois, pois, senhor doutor, não quis sequer cá vir para cumprimentar. E olhe que tem perdido coisas lindas, coisas raras. E a que preços, senhor doutor! Que preços! Preços de crise, autênticos saldos.
Eu lá respondi que de vez em quando espreitava pela montra, na vinda do café ou a caminho da baixa.
- Ah, a montra. Ora, o senhor doutor sabe muito bem que a montra não é para esses negócios. O que é bom, é em geral pequeno. E não se pespega numa vitrina, para todos os basbaques verem. É para os clientes que valem a pena… clientes como o senhor doutor.
E sempre, numa catadupa torrencial:
- Mas eu compreendo bem que o senhor doutor não passe por cá. Eu sei, eu sei… eu raramente estou, a miúda (aponta vagamente para o canapé) tem aulas e de estudar (Claro, essa é a prioridade!, acrescento logo eu, cedendo à minha tendência sentenciosa e obsessão pela educação). Só cá venho uns migalhos ao fim da tarde, e apenas em certas tardes. Ou nos fins-de-semana. Olhe, eu sou assim, que quer? Não sou como certos colegas, que se empenham a meter empregados e cobram cinco vezes mais pelas peças para lhes pagar. Eu não. A mercadoria é vendida a preço justo… Oh senhor doutor, escusa de fazer essa cara, sabe muito bem que eu digo a mais pura das verdades! Cá não há empregados, estou eu, a mulher, a miúda. Mas o atendimento é personalizado, fazem-se atenções a clientes especiais. E o senhor doutor bem sabe: se quiser aparecer, é telefonar. Telefona e quinze minutinhos depois um de nós aparece.
E dando uma inflexão radical ao discurso:
- E esses triglicerídeos?
Faço cara de surpresa. Fui apanhado desprevenido.
- Ah, então o senhor doutor achava que eu me esquecia! Eu bem me lembro de me ter dito que a dieta que fez era por causa dos triglicerídeos. E ficou magrinho, muito mais magrinho. Que eu – e olhe que não fui só eu – até pensei que lhe tinha dado uma coisa má. Ainda comentámos… Mas afinal foi tudo pelo melhor. E vamos lá: o senhor doutor estava goooordo. Gordo como um balão. Depois afinou. E nada de triglicerídeos, aposto! Ah, senhor doutor, a saúde é um bem. O maior! Sem preço! Eu esforço-me por o imitar (aperta a barriga). A sério!
- Bom, enfim, agora já estou ótimo, obrigado – retruco. E, dando um passo em frente: - Vou ver o que há de novo, sim?
- Faça favor, senhor doutor, faça favor. O que quer desta vez? Pecinhas do Oriente?
E voltando-se uma vez mais para a assistente indiferente:
- Ah, o senhor doutor sabe imeeeenso de chinesices. Eu bem costumo dizer: chinesices é com o doutor Cabral. É agarradote, agarradote, não abre os cordões à bolsa, mas ensina-me sempre qualquer coisa. Às vezes pormenores incríveis… (e passando a afetar um semblante mais galhofeiro) – Mas para as comprar é que é sempre um tormento, não é, senhor doutor? É sempre o “talvez, não sei”, o “está rachado, não quero” ou o “isso é muito caro, venho cá para o mês”. Para o senhor doutor tudo é muito caro!!!
- É porque geralmente é mesmo. O senhor pede-me sempre preços exagerados.
Mas o meu interlocutor não desarma:
- Ou se calhar anda à procura de mais livros velhos de direito. Eu tenho uma fornada acabada de chegar. Uma maravilha, senhor doutor, em perfeito estado. Aposto que nunca viu outros assim.
E abana uns cartapácios cheios de bolor, com encadernações a esboroarem-se e páginas a cair.
- O senhor doutor sabe o que isto é?
- Sei, é um Pegas[1].
- Ah, o senhor doutor tem olho. E não o quer comprar? Olhe que lhe faço preço de amigo.
Manuseio os livros carcomidos e húmidos.
- Mas estão péssimos, e ainda por cima incompletos.
Sou fuzilado por um olhar de indignação:
- Oh senhor doutor, então não vê que são livros muito antigos. E de muito valor, muito valor. Mas eu faço-lhe uma atenção, uma bela atenção.
E de supetão:
- Quanto me dá por eles?
- Nada, não os quero nem oferecidos!
- Oh senhor doutor, por amor de Deus!
- É como lhe digo. Nem os posso abrir à vontade! Ficavam logo em pó. O senhor já sabe: eu só quero livros que possa usar sem problemas no meu trabalho!
Posto o Pegas de lado, aparece um código administrativo.
- E este lindo código? Não lhe parece uma maravilha?
- Sim, está bom. Bem conservado.
- E é o de 1842.
- Sim, já vi.
- O DE 1842 – enfatiza – o do Costa CABRAAAL.
- Sim, eu sei.
- E o doutor CABRAAAL não quer comprar o código do costa CABRAAAL?
- Não, obrigado, já o tenho. Talvez outro primo o queira. Eu aviso se encontrar algum interessado…
- Oh senhor doutor, não faça pouco. Se já tem um, fica com dois.
E lá vem o argumento de sempre:
- Pode dar sempre ao seu paizinho.
- Para quê? Se o meu Pai quiser vê o meu.
- É praticamente dado, senhor doutor!
- Quanto é?
- Cinquenta euros. E é porque é para o senhor doutor.
- Oh homem, eu comprei o meu por dez.
- Ai sim?
- Sim.
- De certeza?
- Claro.
- Aposto que foi em Lisboa!
- É verdade.
- Pois, nesses pseudo-livreiros que vendem tudo por dez reis de mel-coado. Não, senhor doutor, eu assim não trabalho. Eu não vendo barato o que sei que vale para depois chorar a má venda. Ah, eu não preciso disso, eu tenho com que viver. Não tenho de andar a vender ao desbarato.
- São estratégias, cada um segue a que mais lhe convém.
- Não são estratégias, senhor doutor, acredite. É má-fé, má-fé desses senhores que deitam a perder os homens honrados, como eu. Eu sei lá onde é que eles arranjam a mercadoria.
- O senhor sabe bem que os livros velhos de direito não têm praticamente valor. Interessam no máximo a uma quinzena de pessoas.
Reparo numa fotografia – antiga e curiosa, mas em muito mau estado – de Angola.
- Hummm, eis algo que talvez me interesse… Apesar de estar praticamente destruída.
- É uma maravilha, senhor doutor… (e depois de um momento de hesitação)… Por acaso sabe onde foi tirada?
- Sim, em Angola.
Compõe o semblante:
- Pois, é isso mesmo. Angola. Colonial. Foto valiosa, foto rara… uma pérola. Quere-a?
- Talvez… tudo depende do preço.
- Estamos entre amigos: 20 euros.
- Bom, dou-lhe dois.
- Oh senhor doutor!
- É o que é.
- Assim não dá.
- Então não a levo.
- Francamente, senhor doutor, francamente!
- Fica cá com ela. Depois não diga que nunca lhe compro nada.
Pega então numa fotografia enorme e manchada da dupla Sacadura Cabral/Gago Coutinho.
- Linda, hem?
- Um bocado grande demais.
- Outro CABRAAAL.
- Sim, é verdade.
- O paizinho ia gostar.
- Se fosse pequena e estivesse em bom estado, acho que sim. Agora assim… onde é que a ia pôr? As minhas sobrinhas até teriam pesadelos!
- Ai, o senhor doutor nunca está contente. É um homem tão difícil. E eu vendia-lha por cem euros.
- CEM EUROS! Esse pedaço de cartão velho?
- Já vi mais caro no OLX.
- Ai então agora compra no OLX??
Tartamudeia:
- Enfim, de vez em quando, se o vendedor for de confiança… que a maioria são drogados a querer desfazer-se das coisas.
- E como sabe que é de confiança?
- Bom, bom, adiante, senhor doutor. Estou a ver que hoje não leva nada…
- Posso levar a foto de Angola: dois euros.
- Ai, lá está o senhor doutor. Pronto, vamos começar de novo a dança. Agora vai-me passar pela loja durante meses e dizer que me dá dois euros pela foto até lha vender.
- Só se me obrigar a fazer isso. Pode vender-ma já.
- Senhor doutor, nem tudo se regateia.
- Discordo: no regatear é que está a base de tudo.
- O senhor doutor não devia ser doutor, devia era ser comerciante. Depois arrepende-se. Não comprou uns pratos liiiiiiiiiiindos Companhia das Índias que eu cá tive.
- Nunca vi na sua loja nada Companhia das Índia.
- Ah, mas tive. Família verde!
- A sério? Foi pena, não os vi.
- Com relevos. Lindos!
- Relevos??
- Sim. Raríssimos. Nem em Lisboa. Nem em Londres!
- E onde encontrou essa maravilha? No OLX?
- Oh senhor doutor, lá está o senhor outra vez. Sempre a fazer pouco do que lhe dizem. Foi do recheio de uma casa.
- Que casa?
- Não lhe digo.
- Família?
- Não insista, sou um túmulo.
- Pronto, de que região era a casa?
- Só lhe digo que era a norte do Tejo.
- Bom, mas já não tem os tais pratos…de pouco ou nada me interessa.
- E duas terrinas…
- Agora também já vinham terrinas?
- Lindos, lindos, lindos…
- Ainda bem para quem os comprou.
- Foi um chinês.
- Veio cá um chinês? À sua loja? Comprar-lhe esses pratos?? – o meu espanto era real.
- Ora, e porque não?
-E donde veio esse chinês?
- Pois donde havia de vir? Da China!
- Ai e saiu da China direitinho aqui à sua loja? – zombei.
- Não, senhor doutor. Já tinha andado por toda a europa. Sempre à coca de coisas da terra dele, lá da China. Ele é duma cidade… eu sei lá como é que se chama, tem daqueles nomes chineses desgraçados… Enfim, é de uma cidade onde se fazia louça da Família Verde, dessa com relevos…
- Ah, que história tão estranha essa que me está a contar. E essa louça com relevos, estou mesmo a ver que não passa daqueles pratos japoneses dos princípios do século XX. Não valem nada.
- Senhor doutor! É verdade! Ele veio cá, viu as peças e levou logo todas. E nem sequer regateou, como certos clientes.
Ri. O homem tinha jogado bem a sua cartada.
- Mas olhe que esses chineses, segundo me dizem, só querem o que está em perfeito estado de conservação.
- Este não, senhor doutor. Bastava ser da tal cidade do não-sei-quantos de onde ele veio. E pagou logo, logo ali. Limpinho!
- Em dinheiro?
- Não, claro que não. Foi para cima de dois mil e quinhentos euros, senhor doutor. E asseguro-lhe que foi o chinês quem saiu a ganhar.
- Pois sim, e a sua carteira também.
- Eram peças lindas, lindas!
- Ok, não duvido. Mas ainda não percebo como é que o homem pagou. Com cheque?
- Não, senhor doutor. Eu não trabalho com cheques. O chinês foi à máquina e levantou!
- Que maravilha de banco ele deve ter: consegue fazer levantamentos de dois mil e quinhentos euros assim, como eu faço de vinte e cinco?!?
Mas o meu interlocutor não me deixou sem resposta:
- É para o senhor doutor ver. Os cartões dos chineses são assim. Os dos chineses a sério. Não é como os nossos. E olhe, se o senhor doutor tivesse um cartão que lhe permitisse levantar esse dinheirão todo, aposto que nem assim o usava. E que tentava comprar-me aqueles pratos e terrinas lindos, lindos por uma mão mal cheia de cêntimos. E ainda se havia de queixar de que eu era muito careiro!

Ri a bom rir. Há poucas coisas que me relaxam tanto como as incursões pelos antiquários!





[1] Manuel Álvares Pegas. Para mais info: http://arlindo-correia.com/240206.html.