Relaxando entre cacos velhos
Mal
entro, o dono avança em minha direção, de gorro (inexplicável, atendendo à
temperatura) e com os seus gordos braços abertos:
-
Senhor doutor, que prazer revê-lo!
E,
voltando-se para uma rapariga que se espapaça num canapé (filha ou sobrinha, penso de imediato):
-
O senhor doutor é um cliente regular, um cliente fiel, mas tem andado ausente,
muito ausente…
Para
logo depois passar ao ataque, tornando a enfrentar-me:
-
Não tem vergonha de estar tanto tempo sem aparecer? Há meses e meses que não o
vemos por aqui!
Balbucio
uma desculpa: os horários desencontrados, o excesso de trabalho, a quase
permanente ausência da cidade.
-
Pois, pois, senhor doutor, não quis sequer cá vir para cumprimentar. E olhe que
tem perdido coisas lindas, coisas raras. E a que preços, senhor doutor! Que
preços! Preços de crise, autênticos saldos.
Eu
lá respondi que de vez em quando espreitava pela montra, na vinda do café ou a
caminho da baixa.
-
Ah, a montra. Ora, o senhor doutor sabe muito bem que a montra não é para esses
negócios. O que é bom, é em geral pequeno. E não se pespega numa vitrina, para
todos os basbaques verem. É para os clientes que valem a pena… clientes como o
senhor doutor.
E
sempre, numa catadupa torrencial:
-
Mas eu compreendo bem que o senhor doutor não passe por cá. Eu sei, eu sei… eu
raramente estou, a miúda (aponta vagamente para o canapé) tem aulas e de
estudar (Claro, essa é a prioridade!,
acrescento logo eu, cedendo à minha tendência sentenciosa e obsessão pela
educação). Só cá venho uns migalhos ao fim da tarde, e apenas em certas tardes.
Ou nos fins-de-semana. Olhe, eu sou assim, que quer? Não sou como certos
colegas, que se empenham a meter empregados e cobram cinco vezes mais pelas
peças para lhes pagar. Eu não. A mercadoria é vendida a preço justo… Oh senhor
doutor, escusa de fazer essa cara, sabe muito bem que eu digo a mais pura das
verdades! Cá não há empregados, estou eu, a mulher, a miúda. Mas o atendimento
é personalizado, fazem-se atenções a clientes especiais. E o senhor doutor bem
sabe: se quiser aparecer, é telefonar. Telefona e quinze minutinhos depois um
de nós aparece.
E
dando uma inflexão radical ao discurso:
-
E esses triglicerídeos?
Faço
cara de surpresa. Fui apanhado desprevenido.
-
Ah, então o senhor doutor achava que eu me esquecia! Eu bem me lembro de me ter
dito que a dieta que fez era por causa dos triglicerídeos. E ficou magrinho,
muito mais magrinho. Que eu – e olhe que não fui só eu – até pensei que lhe
tinha dado uma coisa má. Ainda comentámos… Mas afinal foi tudo pelo melhor. E
vamos lá: o senhor doutor estava goooordo. Gordo como um balão. Depois afinou.
E nada de triglicerídeos, aposto! Ah, senhor doutor, a saúde é um bem. O maior!
Sem preço! Eu esforço-me por o imitar (aperta a barriga). A sério!
-
Bom, enfim, agora já estou ótimo, obrigado – retruco. E, dando um passo em
frente: - Vou ver o que há de novo, sim?
-
Faça favor, senhor doutor, faça favor. O que quer desta vez? Pecinhas do
Oriente?
E
voltando-se uma vez mais para a assistente indiferente:
-
Ah, o senhor doutor sabe imeeeenso de chinesices. Eu bem costumo dizer:
chinesices é com o doutor Cabral. É agarradote, agarradote, não abre os cordões
à bolsa, mas ensina-me sempre qualquer coisa. Às vezes pormenores incríveis… (e
passando a afetar um semblante mais galhofeiro) – Mas para as comprar é que é
sempre um tormento, não é, senhor doutor? É sempre o “talvez, não sei”, o “está
rachado, não quero” ou o “isso é muito caro, venho cá para o mês”. Para o
senhor doutor tudo é muito caro!!!
-
É porque geralmente é mesmo. O senhor pede-me sempre preços exagerados.
Mas
o meu interlocutor não desarma:
-
Ou se calhar anda à procura de mais livros velhos de direito. Eu tenho uma
fornada acabada de chegar. Uma maravilha, senhor doutor, em perfeito estado.
Aposto que nunca viu outros assim.
E
abana uns cartapácios cheios de bolor, com encadernações a esboroarem-se e
páginas a cair.
-
O senhor doutor sabe o que isto é?
-
Sei, é um Pegas[1].
-
Ah, o senhor doutor tem olho. E não o quer comprar? Olhe que lhe faço preço de
amigo.
Manuseio
os livros carcomidos e húmidos.
-
Mas estão péssimos, e ainda por cima incompletos.
Sou
fuzilado por um olhar de indignação:
-
Oh senhor doutor, então não vê que são livros muito antigos. E de muito valor,
muito valor. Mas eu faço-lhe uma atenção, uma bela atenção.
E
de supetão:
-
Quanto me dá por eles?
-
Nada, não os quero nem oferecidos!
-
Oh senhor doutor, por amor de Deus!
- É como lhe digo. Nem os posso abrir à vontade! Ficavam logo em pó. O senhor já sabe: eu só quero livros que possa usar sem problemas no meu trabalho!
- É como lhe digo. Nem os posso abrir à vontade! Ficavam logo em pó. O senhor já sabe: eu só quero livros que possa usar sem problemas no meu trabalho!
Posto
o Pegas de lado, aparece um código administrativo.
-
E este lindo código? Não lhe parece uma maravilha?
-
Sim, está bom. Bem conservado.
-
E é o de 1842.
-
Sim, já vi.
-
O DE 1842 – enfatiza – o do Costa CABRAAAL.
-
Sim, eu sei.
-
E o doutor CABRAAAL não quer comprar o código do costa CABRAAAL?
-
Não, obrigado, já o tenho. Talvez outro primo o queira. Eu aviso se encontrar
algum interessado…
-
Oh senhor doutor, não faça pouco. Se já tem um, fica com dois.
E
lá vem o argumento de sempre:
-
Pode dar sempre ao seu paizinho.
-
Para quê? Se o meu Pai quiser vê o meu.
-
É praticamente dado, senhor doutor!
-
Quanto é?
-
Cinquenta euros. E é porque é para o senhor doutor.
-
Oh homem, eu comprei o meu por dez.
-
Ai sim?
-
Sim.
-
De certeza?
-
Claro.
-
Aposto que foi em Lisboa!
-
É verdade.
-
Pois, nesses pseudo-livreiros que vendem tudo por dez reis de mel-coado. Não,
senhor doutor, eu assim não trabalho. Eu não vendo barato o que sei que vale
para depois chorar a má venda. Ah, eu não preciso disso, eu tenho com que
viver. Não tenho de andar a vender ao desbarato.
-
São estratégias, cada um segue a que mais lhe convém.
-
Não são estratégias, senhor doutor, acredite. É má-fé, má-fé desses senhores
que deitam a perder os homens honrados, como eu. Eu sei lá onde é que eles
arranjam a mercadoria.
-
O senhor sabe bem que os livros velhos de direito não têm praticamente valor.
Interessam no máximo a uma quinzena de pessoas.
Reparo
numa fotografia – antiga e curiosa, mas em muito mau estado – de Angola.
-
Hummm, eis algo que talvez me interesse… Apesar de estar praticamente
destruída.
-
É uma maravilha, senhor doutor… (e depois de um momento de hesitação)… Por
acaso sabe onde foi tirada?
-
Sim, em Angola.
Compõe
o semblante:
-
Pois, é isso mesmo. Angola. Colonial. Foto valiosa, foto rara… uma pérola.
Quere-a?
-
Talvez… tudo depende do preço.
-
Estamos entre amigos: 20 euros.
-
Bom, dou-lhe dois.
-
Oh senhor doutor!
-
É o que é.
-
Assim não dá.
-
Então não a levo.
-
Francamente, senhor doutor, francamente!
-
Fica cá com ela. Depois não diga que nunca lhe compro nada.
Pega
então numa fotografia enorme e manchada da dupla Sacadura Cabral/Gago Coutinho.
-
Linda, hem?
-
Um bocado grande demais.
-
Outro CABRAAAL.
-
Sim, é verdade.
-
O paizinho ia gostar.
-
Se fosse pequena e estivesse em bom estado, acho que sim. Agora assim… onde é
que a ia pôr? As minhas sobrinhas até teriam pesadelos!
-
Ai, o senhor doutor nunca está contente. É um homem tão difícil. E eu
vendia-lha por cem euros.
-
CEM EUROS! Esse pedaço de cartão velho?
-
Já vi mais caro no OLX.
-
Ai então agora compra no OLX??
Tartamudeia:
-
Enfim, de vez em quando, se o vendedor for de confiança… que a maioria são
drogados a querer desfazer-se das coisas.
-
E como sabe que é de confiança?
-
Bom, bom, adiante, senhor doutor. Estou a ver que hoje não leva nada…
-
Posso levar a foto de Angola: dois euros.
-
Ai, lá está o senhor doutor. Pronto, vamos começar de novo a dança. Agora
vai-me passar pela loja durante meses e dizer que me dá dois euros pela foto
até lha vender.
-
Só se me obrigar a fazer isso. Pode vender-ma já.
-
Senhor doutor, nem tudo se regateia.
-
Discordo: no regatear é que está a base de tudo.
-
O senhor doutor não devia ser doutor, devia era ser comerciante. Depois
arrepende-se. Não comprou uns pratos liiiiiiiiiiindos Companhia das Índias que
eu cá tive.
-
Nunca vi na sua loja nada Companhia das Índia.
-
Ah, mas tive. Família verde!
-
A sério? Foi pena, não os vi.
-
Com relevos. Lindos!
-
Relevos??
-
Sim. Raríssimos. Nem em Lisboa. Nem em Londres!
-
E onde encontrou essa maravilha? No OLX?
-
Oh senhor doutor, lá está o senhor outra vez. Sempre a fazer pouco do que lhe
dizem. Foi do recheio de uma casa.
-
Que casa?
-
Não lhe digo.
-
Família?
-
Não insista, sou um túmulo.
-
Pronto, de que região era a casa?
-
Só lhe digo que era a norte do Tejo.
-
Bom, mas já não tem os tais pratos…de pouco ou nada me interessa.
-
E duas terrinas…
-
Agora também já vinham terrinas?
-
Lindos, lindos, lindos…
-
Ainda bem para quem os comprou.
-
Foi um chinês.
-
Veio cá um chinês? À sua loja? Comprar-lhe esses pratos?? – o meu espanto era
real.
-
Ora, e porque não?
-E
donde veio esse chinês?
-
Pois donde havia de vir? Da China!
-
Ai e saiu da China direitinho aqui à sua loja? – zombei.
-
Não, senhor doutor. Já tinha andado por toda a europa. Sempre à coca de coisas
da terra dele, lá da China. Ele é duma cidade… eu sei lá como é que se chama,
tem daqueles nomes chineses desgraçados… Enfim, é de uma cidade onde se fazia
louça da Família Verde, dessa com relevos…
-
Ah, que história tão estranha essa que me está a contar. E essa louça com
relevos, estou mesmo a ver que não passa daqueles pratos japoneses dos
princípios do século XX. Não valem nada.
-
Senhor doutor! É verdade! Ele veio cá, viu as peças e levou logo todas. E nem
sequer regateou, como certos clientes.
Ri.
O homem tinha jogado bem a sua cartada.
-
Mas olhe que esses chineses, segundo me dizem, só querem o que está em perfeito
estado de conservação.
-
Este não, senhor doutor. Bastava ser da tal cidade do não-sei-quantos de onde
ele veio. E pagou logo, logo ali. Limpinho!
-
Em dinheiro?
-
Não, claro que não. Foi para cima de dois mil e quinhentos euros, senhor
doutor. E asseguro-lhe que foi o chinês quem saiu a ganhar.
-
Pois sim, e a sua carteira também.
-
Eram peças lindas, lindas!
-
Ok, não duvido. Mas ainda não percebo como é que o homem pagou. Com cheque?
-
Não, senhor doutor. Eu não trabalho com cheques. O chinês foi à máquina e
levantou!
-
Que maravilha de banco ele deve ter: consegue fazer levantamentos de dois mil e
quinhentos euros assim, como eu faço de vinte e cinco?!?
Mas
o meu interlocutor não me deixou sem resposta:
-
É para o senhor doutor ver. Os cartões dos chineses são assim. Os dos chineses
a sério. Não é como os nossos. E olhe, se o senhor doutor tivesse um cartão que
lhe permitisse levantar esse dinheirão todo, aposto que nem assim o usava. E
que tentava comprar-me aqueles pratos e terrinas lindos, lindos por uma mão mal
cheia de cêntimos. E ainda se havia de queixar de que eu era muito careiro!
Ri
a bom rir. Há poucas coisas que me relaxam tanto como as incursões pelos
antiquários!
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