Thursday, April 02, 2015

Relaxando entre cacos velhos



Mal entro, o dono avança em minha direção, de gorro (inexplicável, atendendo à temperatura) e com os seus gordos braços abertos:
- Senhor doutor, que prazer revê-lo!
E, voltando-se para uma rapariga que se espapaça num canapé (filha ou sobrinha, penso de imediato):
- O senhor doutor é um cliente regular, um cliente fiel, mas tem andado ausente, muito ausente…
Para logo depois passar ao ataque, tornando a enfrentar-me:
- Não tem vergonha de estar tanto tempo sem aparecer? Há meses e meses que não o vemos por aqui!
Balbucio uma desculpa: os horários desencontrados, o excesso de trabalho, a quase permanente ausência da cidade.
- Pois, pois, senhor doutor, não quis sequer cá vir para cumprimentar. E olhe que tem perdido coisas lindas, coisas raras. E a que preços, senhor doutor! Que preços! Preços de crise, autênticos saldos.
Eu lá respondi que de vez em quando espreitava pela montra, na vinda do café ou a caminho da baixa.
- Ah, a montra. Ora, o senhor doutor sabe muito bem que a montra não é para esses negócios. O que é bom, é em geral pequeno. E não se pespega numa vitrina, para todos os basbaques verem. É para os clientes que valem a pena… clientes como o senhor doutor.
E sempre, numa catadupa torrencial:
- Mas eu compreendo bem que o senhor doutor não passe por cá. Eu sei, eu sei… eu raramente estou, a miúda (aponta vagamente para o canapé) tem aulas e de estudar (Claro, essa é a prioridade!, acrescento logo eu, cedendo à minha tendência sentenciosa e obsessão pela educação). Só cá venho uns migalhos ao fim da tarde, e apenas em certas tardes. Ou nos fins-de-semana. Olhe, eu sou assim, que quer? Não sou como certos colegas, que se empenham a meter empregados e cobram cinco vezes mais pelas peças para lhes pagar. Eu não. A mercadoria é vendida a preço justo… Oh senhor doutor, escusa de fazer essa cara, sabe muito bem que eu digo a mais pura das verdades! Cá não há empregados, estou eu, a mulher, a miúda. Mas o atendimento é personalizado, fazem-se atenções a clientes especiais. E o senhor doutor bem sabe: se quiser aparecer, é telefonar. Telefona e quinze minutinhos depois um de nós aparece.
E dando uma inflexão radical ao discurso:
- E esses triglicerídeos?
Faço cara de surpresa. Fui apanhado desprevenido.
- Ah, então o senhor doutor achava que eu me esquecia! Eu bem me lembro de me ter dito que a dieta que fez era por causa dos triglicerídeos. E ficou magrinho, muito mais magrinho. Que eu – e olhe que não fui só eu – até pensei que lhe tinha dado uma coisa má. Ainda comentámos… Mas afinal foi tudo pelo melhor. E vamos lá: o senhor doutor estava goooordo. Gordo como um balão. Depois afinou. E nada de triglicerídeos, aposto! Ah, senhor doutor, a saúde é um bem. O maior! Sem preço! Eu esforço-me por o imitar (aperta a barriga). A sério!
- Bom, enfim, agora já estou ótimo, obrigado – retruco. E, dando um passo em frente: - Vou ver o que há de novo, sim?
- Faça favor, senhor doutor, faça favor. O que quer desta vez? Pecinhas do Oriente?
E voltando-se uma vez mais para a assistente indiferente:
- Ah, o senhor doutor sabe imeeeenso de chinesices. Eu bem costumo dizer: chinesices é com o doutor Cabral. É agarradote, agarradote, não abre os cordões à bolsa, mas ensina-me sempre qualquer coisa. Às vezes pormenores incríveis… (e passando a afetar um semblante mais galhofeiro) – Mas para as comprar é que é sempre um tormento, não é, senhor doutor? É sempre o “talvez, não sei”, o “está rachado, não quero” ou o “isso é muito caro, venho cá para o mês”. Para o senhor doutor tudo é muito caro!!!
- É porque geralmente é mesmo. O senhor pede-me sempre preços exagerados.
Mas o meu interlocutor não desarma:
- Ou se calhar anda à procura de mais livros velhos de direito. Eu tenho uma fornada acabada de chegar. Uma maravilha, senhor doutor, em perfeito estado. Aposto que nunca viu outros assim.
E abana uns cartapácios cheios de bolor, com encadernações a esboroarem-se e páginas a cair.
- O senhor doutor sabe o que isto é?
- Sei, é um Pegas[1].
- Ah, o senhor doutor tem olho. E não o quer comprar? Olhe que lhe faço preço de amigo.
Manuseio os livros carcomidos e húmidos.
- Mas estão péssimos, e ainda por cima incompletos.
Sou fuzilado por um olhar de indignação:
- Oh senhor doutor, então não vê que são livros muito antigos. E de muito valor, muito valor. Mas eu faço-lhe uma atenção, uma bela atenção.
E de supetão:
- Quanto me dá por eles?
- Nada, não os quero nem oferecidos!
- Oh senhor doutor, por amor de Deus!
- É como lhe digo. Nem os posso abrir à vontade! Ficavam logo em pó. O senhor já sabe: eu só quero livros que possa usar sem problemas no meu trabalho!
Posto o Pegas de lado, aparece um código administrativo.
- E este lindo código? Não lhe parece uma maravilha?
- Sim, está bom. Bem conservado.
- E é o de 1842.
- Sim, já vi.
- O DE 1842 – enfatiza – o do Costa CABRAAAL.
- Sim, eu sei.
- E o doutor CABRAAAL não quer comprar o código do costa CABRAAAL?
- Não, obrigado, já o tenho. Talvez outro primo o queira. Eu aviso se encontrar algum interessado…
- Oh senhor doutor, não faça pouco. Se já tem um, fica com dois.
E lá vem o argumento de sempre:
- Pode dar sempre ao seu paizinho.
- Para quê? Se o meu Pai quiser vê o meu.
- É praticamente dado, senhor doutor!
- Quanto é?
- Cinquenta euros. E é porque é para o senhor doutor.
- Oh homem, eu comprei o meu por dez.
- Ai sim?
- Sim.
- De certeza?
- Claro.
- Aposto que foi em Lisboa!
- É verdade.
- Pois, nesses pseudo-livreiros que vendem tudo por dez reis de mel-coado. Não, senhor doutor, eu assim não trabalho. Eu não vendo barato o que sei que vale para depois chorar a má venda. Ah, eu não preciso disso, eu tenho com que viver. Não tenho de andar a vender ao desbarato.
- São estratégias, cada um segue a que mais lhe convém.
- Não são estratégias, senhor doutor, acredite. É má-fé, má-fé desses senhores que deitam a perder os homens honrados, como eu. Eu sei lá onde é que eles arranjam a mercadoria.
- O senhor sabe bem que os livros velhos de direito não têm praticamente valor. Interessam no máximo a uma quinzena de pessoas.
Reparo numa fotografia – antiga e curiosa, mas em muito mau estado – de Angola.
- Hummm, eis algo que talvez me interesse… Apesar de estar praticamente destruída.
- É uma maravilha, senhor doutor… (e depois de um momento de hesitação)… Por acaso sabe onde foi tirada?
- Sim, em Angola.
Compõe o semblante:
- Pois, é isso mesmo. Angola. Colonial. Foto valiosa, foto rara… uma pérola. Quere-a?
- Talvez… tudo depende do preço.
- Estamos entre amigos: 20 euros.
- Bom, dou-lhe dois.
- Oh senhor doutor!
- É o que é.
- Assim não dá.
- Então não a levo.
- Francamente, senhor doutor, francamente!
- Fica cá com ela. Depois não diga que nunca lhe compro nada.
Pega então numa fotografia enorme e manchada da dupla Sacadura Cabral/Gago Coutinho.
- Linda, hem?
- Um bocado grande demais.
- Outro CABRAAAL.
- Sim, é verdade.
- O paizinho ia gostar.
- Se fosse pequena e estivesse em bom estado, acho que sim. Agora assim… onde é que a ia pôr? As minhas sobrinhas até teriam pesadelos!
- Ai, o senhor doutor nunca está contente. É um homem tão difícil. E eu vendia-lha por cem euros.
- CEM EUROS! Esse pedaço de cartão velho?
- Já vi mais caro no OLX.
- Ai então agora compra no OLX??
Tartamudeia:
- Enfim, de vez em quando, se o vendedor for de confiança… que a maioria são drogados a querer desfazer-se das coisas.
- E como sabe que é de confiança?
- Bom, bom, adiante, senhor doutor. Estou a ver que hoje não leva nada…
- Posso levar a foto de Angola: dois euros.
- Ai, lá está o senhor doutor. Pronto, vamos começar de novo a dança. Agora vai-me passar pela loja durante meses e dizer que me dá dois euros pela foto até lha vender.
- Só se me obrigar a fazer isso. Pode vender-ma já.
- Senhor doutor, nem tudo se regateia.
- Discordo: no regatear é que está a base de tudo.
- O senhor doutor não devia ser doutor, devia era ser comerciante. Depois arrepende-se. Não comprou uns pratos liiiiiiiiiiindos Companhia das Índias que eu cá tive.
- Nunca vi na sua loja nada Companhia das Índia.
- Ah, mas tive. Família verde!
- A sério? Foi pena, não os vi.
- Com relevos. Lindos!
- Relevos??
- Sim. Raríssimos. Nem em Lisboa. Nem em Londres!
- E onde encontrou essa maravilha? No OLX?
- Oh senhor doutor, lá está o senhor outra vez. Sempre a fazer pouco do que lhe dizem. Foi do recheio de uma casa.
- Que casa?
- Não lhe digo.
- Família?
- Não insista, sou um túmulo.
- Pronto, de que região era a casa?
- Só lhe digo que era a norte do Tejo.
- Bom, mas já não tem os tais pratos…de pouco ou nada me interessa.
- E duas terrinas…
- Agora também já vinham terrinas?
- Lindos, lindos, lindos…
- Ainda bem para quem os comprou.
- Foi um chinês.
- Veio cá um chinês? À sua loja? Comprar-lhe esses pratos?? – o meu espanto era real.
- Ora, e porque não?
-E donde veio esse chinês?
- Pois donde havia de vir? Da China!
- Ai e saiu da China direitinho aqui à sua loja? – zombei.
- Não, senhor doutor. Já tinha andado por toda a europa. Sempre à coca de coisas da terra dele, lá da China. Ele é duma cidade… eu sei lá como é que se chama, tem daqueles nomes chineses desgraçados… Enfim, é de uma cidade onde se fazia louça da Família Verde, dessa com relevos…
- Ah, que história tão estranha essa que me está a contar. E essa louça com relevos, estou mesmo a ver que não passa daqueles pratos japoneses dos princípios do século XX. Não valem nada.
- Senhor doutor! É verdade! Ele veio cá, viu as peças e levou logo todas. E nem sequer regateou, como certos clientes.
Ri. O homem tinha jogado bem a sua cartada.
- Mas olhe que esses chineses, segundo me dizem, só querem o que está em perfeito estado de conservação.
- Este não, senhor doutor. Bastava ser da tal cidade do não-sei-quantos de onde ele veio. E pagou logo, logo ali. Limpinho!
- Em dinheiro?
- Não, claro que não. Foi para cima de dois mil e quinhentos euros, senhor doutor. E asseguro-lhe que foi o chinês quem saiu a ganhar.
- Pois sim, e a sua carteira também.
- Eram peças lindas, lindas!
- Ok, não duvido. Mas ainda não percebo como é que o homem pagou. Com cheque?
- Não, senhor doutor. Eu não trabalho com cheques. O chinês foi à máquina e levantou!
- Que maravilha de banco ele deve ter: consegue fazer levantamentos de dois mil e quinhentos euros assim, como eu faço de vinte e cinco?!?
Mas o meu interlocutor não me deixou sem resposta:
- É para o senhor doutor ver. Os cartões dos chineses são assim. Os dos chineses a sério. Não é como os nossos. E olhe, se o senhor doutor tivesse um cartão que lhe permitisse levantar esse dinheirão todo, aposto que nem assim o usava. E que tentava comprar-me aqueles pratos e terrinas lindos, lindos por uma mão mal cheia de cêntimos. E ainda se havia de queixar de que eu era muito careiro!

Ri a bom rir. Há poucas coisas que me relaxam tanto como as incursões pelos antiquários!





[1] Manuel Álvares Pegas. Para mais info: http://arlindo-correia.com/240206.html.

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