Velharias de família
Há
três ou quatro anos um amigo meu que é “barra” em fotografia antiga mostrou-me
um álbum que lhe tinham emprestado a fim de scannar
os daguerreótipos que lhe parecessem interessantes para aumentar a sua
gigantesca base de dados. Como o álbum vinha da Beira eu próprio percorria com algum cuidado as
digitalizações que o Alexandre tinha feito, na esperança de
me deparar com algum nome ou cara conhecidos. Não foi preciso esperar muito
pois uma das primeiras fotos que passou pelo ecrã representava um teenager oitocentista de ar sério e
grande gravata acompanhado de uma dedicatória onde se lia algo do género: Numa Pompílio, Celorico da Beira.
Interrompi por momentos a visualização e perguntei ao responsável pela recolha:
-
Este rapaz é da família dos donos do
álbum?
-
Creio que sim.
- Então tem graça: deve
haver aqui vários parentes meus.
- Ora, como sabes tu
isso?
- É que espero bem que
só haja um desgraçado que tenha tido o azar de receber o nome Numa Pompílio em
Celorico nesta época. E nós temos outra foto do mesmo Numa (no caso, o primo
Numa) um pouco mais velho que é bastante parecida com esta.
E
era verdade. Tratava-se de um conjunto de fotos que tinha vindo de um dos
casarões da família Osório, da qual eu descendo. Assim se justificava a
presença de Numa. Numa Pompílio porque o pai, jovem licenciado em direito
quando do nascimento do primeiro varão, quis certamente dar ares de entendedor
de história latina. E a criança lá recebeu esse nome horrível que lhe valeu
jamais ter de usar qualquer apelido. Para quê? Não havia mais ninguém com nome
semelhante para se confundir! E quando Numa cresceu e se tornou num militar
conhecido em Viseu ficou simplesmente crismado coronel Numa Pompílio. Até a rua à qual atribuíram o seu nome foi assim
batizada; até alguns dos seus trabalhos históricos mais breves estão assinados
dessa forma.
Ora,
todos os que folhearam os velhos álbuns do século XIX, com folhas descoladas e
capas rachadas, de onde caem constantemente pedaços de fotografias esbatidos já
sentiram certamente necessidade de arranjar resposta para a pergunta elementar
que logo se coloca: quem será esta gente?
E provavelmente todos sabem como tal por vezes se revela extremamente difícil
ou mesmo impossível. Antes de mais, é preciso retirar com cuidado as fotos dos
“buracos” onde estão “encaixadas”. Ora, como os cartões em que a maior parte
das fotografias estão coladas são em regra muito mais duros do que as folhas do
álbum há que tentar removê-las com mil cautelas para não rasgar (ainda mais) a
página. Uma vez extraída a foto (voltar a colocá-la convenientemente no sítio
também vai ser uma epopeia!), podemos ter (i)
muita sorte, (ii) sorte, (iii) azar ou mesmo (iv) muito
azar. No primeiro caso, surgirão no verso ou no canto da foto indicações
preciosas para a identificação do(s) retratado(s). Escritas pelo próprio ou por
alguma alma paciente, não interessa. O que vale é que ficamos a saber de quem
se trata. No entanto há que agir sempre com prudência: é que os nossos
antepassados também se enganavam. No segundo caso, só nos deparamos com um nome
próprio. Qualquer coisa do género Tio
Francisco ou Marquinhas. Eu embirro
supinamente com as Eduardas. Na
família Cabral durante gerações deu-se esse nome a montes de crianças. Por
isso, dizer ou não dizer Eduarda não
adianta grande coisa. Sim, é uma das Eduardas Cabral… mas qual? No terceiro
caso, há apenas uma indicação genérica que exaspera: Coimbra, Seia, Celorico, Poiares ou mesmo a inevitável F.a
da Foz. Ou uma data: 1867. Fica-se
com a sensação de que o esforço não rendeu muito. Por fim, há o pior cenário:
não se encontrar um único elemento de identificação. O problema adensa-se
porque em regra as fotos da família e
dos amigos mais próximos não têm nomes nem datas. Tem lógica: não era preciso.
Para quê escrever dados desnecessários em retratos de pessoas que todos
identificavam? Ou seja: as fotografias que mais nos interessam são as que por
vezes mais dificuldades temos em etiquetar. Eu por exemplo tenho para aí umas
cinco cópias da foto de um casal de cerca 1860 que creio saber quem são. Pois, creio…porque nenhuma tem qualquer
referência para além da data que se acha numa
delas. Cada cópia veio de uma casa diferente da família: assim, torna-se
difícil não partir do princípio que estão ali representados uns parentes
quaisquer. Por vezes tem-se sorte. Certo dia estava eu a arrumar daguerreótipos
velhos quando a minha Avó me perguntou: o
que é que andas para aí a fazer com a fotografia da minha Bisavó? Boa! Mais
um cromo identificado! Mas noutros casos, quando eu pergunto à Avó:
-
A Avó sabe por acaso quem é esta senhora?
Ou este casal?
a
Avó olha para o velho cartão oitocentista e responde-me um tanto agastada:
-
Mas tu achas que eu sou assim tão velha?
Antes de eu nascer já estas pessoas deviam ter morrido há imenso tempo!
Há
outras situações em que consigo a identificação necessária. Como por exemplo
quando algum tio ou primo velho me dizem:
-
Olha, é uma foto em tamanho pequeno do
Avô X. Em casa dos meus Avós havia uma ampliação grande na sala de visitas. Eu
por acaso embirrava bastante com ela: sempre achei que este Avô tinha um ar
bocado sinistro.
Mas
voltemos ao álbum do Numa Pompílio. Claro está que a maior parte das
fotografias não se achavam identificadas. Que azar! Ainda por cima eu sou um
péssimo fisionomista e nunca logro descobrir os “ares de família” que tantos
afirmam conseguir descortinar. Portanto, de entre todos aqueles retratados
anónimos não fazia a mais pálida ideia de quais seriam meus parentes. No
entanto, havia uma réstia de esperança:
-
Alexandre, sabes se o dono do álbum
consegue identificar estas pessoas?
O
Alexandre não me conseguiu dar resposta, mas amavelmente pôs-me em contacto com
esse parente cuja existência eu pura e simplesmente desconhecia.
Se
por um lado foi interessante conhecer o dito primo, que era um homem bastante
simpático, por outro a nossa conversa revelou-se um balde de água gelada no que
diz respeito a tentativas de identificação.
-
Não sei quem é ninguém – respondeu-me
ele – porque quando éramos pequenos não
nos deixavam mexer no álbum, que já estava um bocado estragado, para não o
danificarmos ainda mais. E o álbum ficou numa mesa da sala de visitas, onde
pouco se ia, até as gerações mais velhas morrerem. Nessa altura já tínhamos
idade para o manusear, mas já não havia ninguém que nos ensinasse a identificar
os fotografados. O único parente que eu sei reconhecer é o Tio Y, porque herdei
o relógio que o meu bisavó herdou dele, porque era juiz como nós todos e porque
havia um retrato grande na parede ao qual de vez em quando se fazia uma
referência.
Eu
agradeci as informações. Mas de pouco ou nada me serviram… desde logo por
também ter uma cópia da foto do tal velho Y. Y era mesmo uma das únicas pessoas
que eu conseguira reconhecer.
A
questão que se coloca é então a seguinte: terá sido sensato não deixar os mais
novos da família sequer tocar no tal álbum? É verdade que o dito não se desfez
por completo e que aí está… mas que utilidade tem hoje em dia? Se ninguém
reconhece os retratados, qual será o seu valor para a história da família? Bem
pouco. E como o valor efetivo de álbuns velhos e estragados do século XIX não
impressiona julgo que a aposta não foi a mais inteligente.
Quem
fala em álbuns fala igualmente nas demais antigualhas familiares que passam de
geração em geração. Não raro há sentimentos antagónicos em relação a estas
peças. Por um lado, temos receio de que se estraguem e não gostamos que mexam
demasiado nelas. Por outro, é óbvio que se não incutimos nos mais novos um
mínimo de interesse pelas peças eles esquecê-las-ão. O resultado será ainda
pior do que a perda pelo uso: se tiverem valor, serão vendidas; caso contrário,
vão para o lixo ou são esquecidas até apodrecerem num vão qualquer. Ora, creio
que uma das maneiras de garantir que esse mesmo interesse nasce e se mantém
passa efetivamente por os deixar tomar contacto com as peças. Tendo naturalmente
o cuidado de os advertir que o devem fazer com cautela.
Há
um par de dias a minha prima P. redescobriu uma velha caixa “mandarim” onde se
costumavam pôr as amêndoas na Páscoa. Andava desparecida há anos e anos. Ficámos
felicíssimos com o reencontro dos escaninhos multicolores e estou convencido de
que as amêndoas que lá se colocarem vão saber ainda melhor. Ao abrirmos a caixa
lembrámo-nos da Tia I, que gostava imenso dela e que nos deixava sempre
distribuir as amêndoas pelas várias tacinhas. O mesmo se passava com as velhas
“panelas” chinesas de porcelana que estavam outrora na sala de jantar onde se
guardava a dita caixa. Para quem não as “conhecia”, eram panelas iguais a
tantas outras: mas para nós contavam uma história bastante rocambolesca entre
um menino que roubava flores a uma senhora. Ou com uma peça um tanto louca
também vinda de Macau: uma roda de latão com quatro pratos para pôr bolos. A
Zabi ficou fascinada e farta-se de brincar com aquilo. Não a estragará? Não:
ela sabe que tem de ter cuidado com ela. E na verdade também nós com a idade
dela brincávamos com a “roda” de forma bastante idêntica. Ou o cordão do
relógio do velho Trisavô capitalista. Para quem não conhece a sua origem é um
trancelim igual a milhões de tantos outros: mas eu gosto dele por ser uma
ligação aquele meu antepassado, ao seu filho (e meu Bisavô) e ao seu neto (o
meu Avô).
Ou
mesmo aquele que talvez tenha sido o meu primeiro contacto com a arte
indo-portuguesa e com a Goa que hoje tanto estremeço. Sobre a lareira da sala
de visitas de uma das minhas Tias Avós está um belo calvário indo-português. Eu
desde cedo achei graça à peça, por desde cedo gostar de antiguidades. Se me
tivessem dito Não toques, não te
aproximes sequer pois podes estragá-lo provavelmente nem me lembraria agora
dele. No entanto, as pessoas a quem perguntei o que eram tiveram o bom senso de
me explicar que tinha vindo uma terra na Índia chamada Goa onde um Tio padre
velho dirigira um seminário com um nome insólito. Quando esse padre voltara,
trouxera o calvário.
Hoje,
sei bem qual é o nome insólito. E já não me parece nada estranho: Rachol. E
curiosamente a decisão de começar a estudar a aplicação do direito em Goa
começou precisamente por uma conversa com o meu orientador em torno dos
retratos dos vice-reis e de… calvários indo-portugueses.
É
verdade que nem tudo são coincidências. Mas também é certo que há acasos
curiosos.