Saturday, April 12, 2014

Velharias de família

Há três ou quatro anos um amigo meu que é “barra” em fotografia antiga mostrou-me um álbum que lhe tinham emprestado a fim de scannar os daguerreótipos que lhe parecessem interessantes para aumentar a sua gigantesca base de dados. Como o álbum vinha da Beira eu próprio percorria com algum cuidado as digitalizações que o Alexandre tinha feito, na esperança de me deparar com algum nome ou cara conhecidos. Não foi preciso esperar muito pois uma das primeiras fotos que passou pelo ecrã representava um teenager oitocentista de ar sério e grande gravata acompanhado de uma dedicatória onde se lia algo do género: Numa Pompílio, Celorico da Beira. Interrompi por momentos a visualização e perguntei ao responsável pela recolha:
- Este rapaz é da família dos donos do álbum?
- Creio que sim.
- Então tem graça: deve haver aqui vários parentes meus.
- Ora, como sabes tu isso?
- É que espero bem que só haja um desgraçado que tenha tido o azar de receber o nome Numa Pompílio em Celorico nesta época. E nós temos outra foto do mesmo Numa (no caso, o primo Numa) um pouco mais velho que é bastante parecida com esta.
E era verdade. Tratava-se de um conjunto de fotos que tinha vindo de um dos casarões da família Osório, da qual eu descendo. Assim se justificava a presença de Numa. Numa Pompílio porque o pai, jovem licenciado em direito quando do nascimento do primeiro varão, quis certamente dar ares de entendedor de história latina. E a criança lá recebeu esse nome horrível que lhe valeu jamais ter de usar qualquer apelido. Para quê? Não havia mais ninguém com nome semelhante para se confundir! E quando Numa cresceu e se tornou num militar conhecido em Viseu ficou simplesmente crismado coronel Numa Pompílio. Até a rua à qual atribuíram o seu nome foi assim batizada; até alguns dos seus trabalhos históricos mais breves estão assinados dessa forma.
Ora, todos os que folhearam os velhos álbuns do século XIX, com folhas descoladas e capas rachadas, de onde caem constantemente pedaços de fotografias esbatidos já sentiram certamente necessidade de arranjar resposta para a pergunta elementar que logo se coloca: quem será esta gente? E provavelmente todos sabem como tal por vezes se revela extremamente difícil ou mesmo impossível. Antes de mais, é preciso retirar com cuidado as fotos dos “buracos” onde estão “encaixadas”. Ora, como os cartões em que a maior parte das fotografias estão coladas são em regra muito mais duros do que as folhas do álbum há que tentar removê-las com mil cautelas para não rasgar (ainda mais) a página. Uma vez extraída a foto (voltar a colocá-la convenientemente no sítio também vai ser uma epopeia!), podemos ter (i) muita sorte, (ii) sorte, (iii) azar ou mesmo (iv) muito azar. No primeiro caso, surgirão no verso ou no canto da foto indicações preciosas para a identificação do(s) retratado(s). Escritas pelo próprio ou por alguma alma paciente, não interessa. O que vale é que ficamos a saber de quem se trata. No entanto há que agir sempre com prudência: é que os nossos antepassados também se enganavam. No segundo caso, só nos deparamos com um nome próprio. Qualquer coisa do género Tio Francisco ou Marquinhas. Eu embirro supinamente com as Eduardas. Na família Cabral durante gerações deu-se esse nome a montes de crianças. Por isso, dizer ou não dizer Eduarda não adianta grande coisa. Sim, é uma das Eduardas Cabral… mas qual? No terceiro caso, há apenas uma indicação genérica que exaspera: Coimbra, Seia, Celorico, Poiares ou mesmo a inevitável F.a da Foz. Ou uma data: 1867. Fica-se com a sensação de que o esforço não rendeu muito. Por fim, há o pior cenário: não se encontrar um único elemento de identificação. O problema adensa-se porque em regra as fotos da família e dos amigos mais próximos não têm nomes nem datas. Tem lógica: não era preciso. Para quê escrever dados desnecessários em retratos de pessoas que todos identificavam? Ou seja: as fotografias que mais nos interessam são as que por vezes mais dificuldades temos em etiquetar. Eu por exemplo tenho para aí umas cinco cópias da foto de um casal de cerca 1860 que creio saber quem são. Pois, creio…porque nenhuma tem qualquer referência para além da data que se acha numa delas. Cada cópia veio de uma casa diferente da família: assim, torna-se difícil não partir do princípio que estão ali representados uns parentes quaisquer. Por vezes tem-se sorte. Certo dia estava eu a arrumar daguerreótipos velhos quando a minha Avó me perguntou: o que é que andas para aí a fazer com a fotografia da minha Bisavó? Boa! Mais um cromo identificado! Mas noutros casos, quando eu pergunto à Avó:
- A Avó sabe por acaso quem é esta senhora? Ou este casal?
a Avó olha para o velho cartão oitocentista e responde-me um tanto agastada:
- Mas tu achas que eu sou assim tão velha? Antes de eu nascer já estas pessoas deviam ter morrido há imenso tempo!
Há outras situações em que consigo a identificação necessária. Como por exemplo quando algum tio ou primo velho me dizem:
- Olha, é uma foto em tamanho pequeno do Avô X. Em casa dos meus Avós havia uma ampliação grande na sala de visitas. Eu por acaso embirrava bastante com ela: sempre achei que este Avô tinha um ar bocado sinistro.
Mas voltemos ao álbum do Numa Pompílio. Claro está que a maior parte das fotografias não se achavam identificadas. Que azar! Ainda por cima eu sou um péssimo fisionomista e nunca logro descobrir os “ares de família” que tantos afirmam conseguir descortinar. Portanto, de entre todos aqueles retratados anónimos não fazia a mais pálida ideia de quais seriam meus parentes. No entanto, havia uma réstia de esperança:
- Alexandre, sabes se o dono do álbum consegue identificar estas pessoas?
O Alexandre não me conseguiu dar resposta, mas amavelmente pôs-me em contacto com esse parente cuja existência eu pura e simplesmente desconhecia.
Se por um lado foi interessante conhecer o dito primo, que era um homem bastante simpático, por outro a nossa conversa revelou-se um balde de água gelada no que diz respeito a tentativas de identificação.
- Não sei quem é ninguém – respondeu-me ele – porque quando éramos pequenos não nos deixavam mexer no álbum, que já estava um bocado estragado, para não o danificarmos ainda mais. E o álbum ficou numa mesa da sala de visitas, onde pouco se ia, até as gerações mais velhas morrerem. Nessa altura já tínhamos idade para o manusear, mas já não havia ninguém que nos ensinasse a identificar os fotografados. O único parente que eu sei reconhecer é o Tio Y, porque herdei o relógio que o meu bisavó herdou dele, porque era juiz como nós todos e porque havia um retrato grande na parede ao qual de vez em quando se fazia uma referência.
Eu agradeci as informações. Mas de pouco ou nada me serviram… desde logo por também ter uma cópia da foto do tal velho Y. Y era mesmo uma das únicas pessoas que eu conseguira reconhecer.
A questão que se coloca é então a seguinte: terá sido sensato não deixar os mais novos da família sequer tocar no tal álbum? É verdade que o dito não se desfez por completo e que aí está… mas que utilidade tem hoje em dia? Se ninguém reconhece os retratados, qual será o seu valor para a história da família? Bem pouco. E como o valor efetivo de álbuns velhos e estragados do século XIX não impressiona julgo que a aposta não foi a mais inteligente.
Quem fala em álbuns fala igualmente nas demais antigualhas familiares que passam de geração em geração. Não raro há sentimentos antagónicos em relação a estas peças. Por um lado, temos receio de que se estraguem e não gostamos que mexam demasiado nelas. Por outro, é óbvio que se não incutimos nos mais novos um mínimo de interesse pelas peças eles esquecê-las-ão. O resultado será ainda pior do que a perda pelo uso: se tiverem valor, serão vendidas; caso contrário, vão para o lixo ou são esquecidas até apodrecerem num vão qualquer. Ora, creio que uma das maneiras de garantir que esse mesmo interesse nasce e se mantém passa efetivamente por os deixar tomar contacto com as peças. Tendo naturalmente o cuidado de os advertir que o devem fazer com cautela.
Há um par de dias a minha prima P. redescobriu uma velha caixa “mandarim” onde se costumavam pôr as amêndoas na Páscoa. Andava desparecida há anos e anos. Ficámos felicíssimos com o reencontro dos escaninhos multicolores e estou convencido de que as amêndoas que lá se colocarem vão saber ainda melhor. Ao abrirmos a caixa lembrámo-nos da Tia I, que gostava imenso dela e que nos deixava sempre distribuir as amêndoas pelas várias tacinhas. O mesmo se passava com as velhas “panelas” chinesas de porcelana que estavam outrora na sala de jantar onde se guardava a dita caixa. Para quem não as “conhecia”, eram panelas iguais a tantas outras: mas para nós contavam uma história bastante rocambolesca entre um menino que roubava flores a uma senhora. Ou com uma peça um tanto louca também vinda de Macau: uma roda de latão com quatro pratos para pôr bolos. A Zabi ficou fascinada e farta-se de brincar com aquilo. Não a estragará? Não: ela sabe que tem de ter cuidado com ela. E na verdade também nós com a idade dela brincávamos com a “roda” de forma bastante idêntica. Ou o cordão do relógio do velho Trisavô capitalista. Para quem não conhece a sua origem é um trancelim igual a milhões de tantos outros: mas eu gosto dele por ser uma ligação aquele meu antepassado, ao seu filho (e meu Bisavô) e ao seu neto (o meu Avô).
Ou mesmo aquele que talvez tenha sido o meu primeiro contacto com a arte indo-portuguesa e com a Goa que hoje tanto estremeço. Sobre a lareira da sala de visitas de uma das minhas Tias Avós está um belo calvário indo-português. Eu desde cedo achei graça à peça, por desde cedo gostar de antiguidades. Se me tivessem dito Não toques, não te aproximes sequer pois podes estragá-lo provavelmente nem me lembraria agora dele. No entanto, as pessoas a quem perguntei o que eram tiveram o bom senso de me explicar que tinha vindo uma terra na Índia chamada Goa onde um Tio padre velho dirigira um seminário com um nome insólito. Quando esse padre voltara, trouxera o calvário.
Hoje, sei bem qual é o nome insólito. E já não me parece nada estranho: Rachol. E curiosamente a decisão de começar a estudar a aplicação do direito em Goa começou precisamente por uma conversa com o meu orientador em torno dos retratos dos vice-reis e de… calvários indo-portugueses.

É verdade que nem tudo são coincidências. Mas também é certo que há acasos curiosos.

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