Regeneração eucarística para a vida
Tal
como toda a gente que desde há anos recorre ocasionalmente aos táxis lisboetas,
já tive oportunidade de conhecer pessoas verdadeiramente mirabolantes ao
volante. Desde os que contam histórias picantes alegadamente envolvendo
dirigentes políticos aos que mostram marcas de agressões feitas por assaltantes
(havia um, com quem outrora me cruzava com alguma regularidade, a maior
parte das vezes quando partilhava o táxi com amigos, que adorava exibir uns
vergões em volta do pescoço – “marcas de uma tentativa de estrangulamento em
que quase fui desta para melhor”, asseverava). Desde aqueles que pura e
simplesmente não sabem para onde vão aos que nos levam aonde não queremos ir. Desde
os que súbita e inesperadamente acham que são nossos velhos amigos aos que não se
inibem de mostrar que estão munidos de convincente navalha – para afugentar
qualquer tipo de atacante (pois quem sabe se não somos um ladrão temível?).
No
entanto, nunca tinha conhecido um taxista com pretensões a seguidor de pseudo filosofias
orientais. Algum dia tinha de ser: foi hoje, após um jantar de cachupa seguido
de uma cerveja na companhia da Alice, do Helder e do Duarte.
Num
primeiro momento, julguei-me cheio de sorte. Apanhei o táxi mal cruzei a
avenida da Liberdade. Devia ser mais desconfiado: quando a esmola é demasiada…
Lá
entrei no táxi (sento-me sempre ao lado do condutor) e dei as indicações
necessárias para chegarmos rapidamente ao destino.
-
Tantos turistas… – respondeu o homem.
-
É porque está uma noite impecável. Até houve fogo-de-artifício. Não viu? Junto
ao rio.
-
Vi, vi. É para nos enganar a todos. É um engodo, amigo, um engodo.
-
Pode ser, mas é bem giro.
Franzindo
o sobrolho, replicou:
-
O mundo está assim. Tudo podre, tudo ao contrário. E há dinheiro de sobra para
recuperar, pôr tudo nos eixos.
-
Mas estamos ainda numa época de crise.
-
Oh amigo, qual crise! Eles são engenhosos, muito engenhosos. Isto é tudo
inventado para nos roubarem, amigo, para nos levarem tudo.
E,
depois de um instante de suspense:
-
Sabe quanto lucro deu o ministério da saúde?
-
Um ministério não dá lucro. Pura e simplesmente não se pode raciocinar assim.
-
O amigo pensa assim porque pensa como eles querem que pense. Ah, acredite em
mim! Eu conheço-os a todos, e conheço-os bem. Sei o que são. A fundo. E fique
sabendo que deu de lucro 39 milhões de euros! Tudo isto ganho graças a quê? Ao
sofrimento do povo, que fica sem hospitais nem tratamentos para os glutões
engordarem com os lucros.
Nem
me dei ao trabalho de responder.
Mas,
sabe – prosseguia o homem –, eu até gosto que haja estas injustiças e
desgraças.
-
Ora, para quê?
-
Oh, o meu amigo desconhece os fundamentos profundos da vida. Eu não. Eu sei. Eu
sei o que está por debaixo de tudo isto.
E,
depois de respirar funda e ruidosamente:
-
Quer saber o que é?
Estava
já pronto para responder “claro!” (mas sem saber se o devia fazer, pois não estava
disposto a perder tempos infindos numa discussão estéril numa altura em que
tinha pressa no regresso a casa) quando o telemóvel tocou. Durante os segundos
breves consumidos pela conversa, o meu interlocutor limitou-se a conduzir. Mas,
mal parei, tornou ao mesmo ponto:
-
Quer ou não?
-
Bom, agora deixou-me curioso. Explique lá.
Então,
o motorista do táxi deixou pender a cabeça sobre o peito, inspirou uma vez mais
e disparou, num tom francamente mais baixo:
-
Regeneração eucarística para a vida.
-
Desculpe?! – perguntei, apanhado de surpresa.
O
que o levou a repetir, agora de forma bem mais audível:
-
Regeneração eucarística para a vida!
-
Olhe, fiquei na mesma sem perceber nada.
O
homem olhou-me então com uma ponta de desdém pelo pobre mortal que nada
compreendia de realidades cósmico-transcendentes. E depois, cheio de superioridade:
-
Regeneração eucarística para a vida! Aposto que o meu amigo não sabe o que são os
Vedas.
-
Por acaso até sei. São…
Mas
ele atalhou sem dar provas de piedade:
-
Aposto que o meu amigo, mesmo que saiba o que são, nunca leu os Vedas.
-
Isso não..,
-
Eu li, os quatro livros dos Vedas. Mais do que uma vez. Li-os todos. Desde há
muitos anos. E releio-os sempre.
E,
prosseguindo no seu delírio:
-
É por isso, por saber tudo e por ter lido e aprendido tudo o que é explicado
nos Vedas, que sou taxista. Tenho de arranjar uma profissão louca, que quase me
mate de stress. Uma profissão que me obrigue a ir procurar ajuda nos Vedas. O
stress faz-me procurar os Vedas, e ser taxista é a profissão que mais stress me
causa. É por isso que conheço tão bem os Vedas. E sei o que é a regeneração
eucarística para a vida.
Já
a lamentar a triste sorte que me tinha calhado ao apanhar o táxi de semelhante
tolinho, eu apenas respondia:
-
Olhe, estamos quase. Se calhar fico já ali, a seguir à paragem.
-
O amigo é apressado, é filho do tempo de hoje. Por isso não leu os Vedas.
-
Pois não, mas quando tiver oportunidade eu leio.
-
Não basta isso. Há mais que fazer do que ler os Vedas. E a mensagem…
-
Qual mensagem? A regeneração eucarística para a vida?
-
Isso! A mensagem está contida nos ensinamentos de muitos povos.
-
Ah, que bom.
-
Povos como os fenícios! Sabe quem foram os fenícios?
-
Sei, sim.
-
O amigo sabe lá quem foram os fenícios! Os fenícios acreditavam na regeneração
eucarística para a vida. Está tudo nos escritos deles.
-
Ok, de acordo. Quando tiver oportunidade, leio esses escritos. Depois dos
Vedas.
-
Ah, amigo! – concluiu ele – O amigo é um homem da nossa época. Nunca terá tempo
para os ler. Nunca quererá saber. Pouco ou nada lhe interessa a regeneração
eucarística para a vida.
-
Pois, está bem. Ah, chegamos. Diga-me lá quando é.
O
homem recebeu a nota, agradeceu a gorjeta, devolveu o troco. Mas ao fazê-lo, não
resistiu:
-
Não se esqueça dos fenícios…
Nem
da regeneração eucarística para a vida!!! Tive vontade de acrescentar. Mas, há
que confessar, acobardei-me!