Bodo aos pobres
Hoje, corrigido o molho de exames de recurso que me
esperava sobre a secretária – e em jeito de recompensa pelo trabalho despachado
e (até) pelas relativamente boas notas dadas – decidi ir tomar café a um centro
comercial em Celas que frequento apenas esporadicamente. Isto com o propósito
paralelo de passear uma meia hora pelos corredores em busca de alguma promoção
interessante.
Uma vez tratada a parte mais importante (o café,
obviamente) lá me predispus a percorrer aquelas galerias bastante vazias e cada
vez mais minadas pela gangrena de qualquer espaço comercial deste género – as
lojecas de costureiras, em regra prenúncio de negra ruína. Palmilhei
corredores, subi e desci escadas, inspecionei montras, mas nada encontrei que
me tentasse minimamente. Até – aha! – me deparar com um tabuleiro numa vitrina
isolada que me pareceu interessante. Alojaram-no na parte menos destacada do
expositor, mas chamou-me logo a atenção. Latino como sou, gosto de (i) cores
fortes e (ii) de citrinos. Ora, a bandeja tinha uma grossa banda azul intenso
contornando um fundo amarelo sobre o qual se desenhavam, num estilo muito “pop”
e 60’s a que achei graça, laranjas e limões em vias de se transformar em sumo. Para
um amante do colorido que bebe litradas de sumo de laranja e uns bons jarros de
limonada por semana, a peça fazia sentido.
Curioso em saber o preço do tabuleiro, comecei à procura
da loja correspondente àquela vitrina. Por mera exclusão de partes, concluí que
seria um enorme espaço do outro lado do corredor, no qual se vendiam o que me
pareciam ser horríveis peças de artesanato. Tentei a minha sorte.
Dentro de portas, encontrei apenas duas pessoas, ambas
sessentonas: empoleirada num escadote, a proprietária passava a uma velocidade
impressionante esculturas bastante feias a uma senhora enrolada num sobretudo
cor-de-camelo.
- Eu juro, juro por Deus – asseverava – que não tenho
peças mais nenhumas. Só estas. Duas grandes, e as pequenas. Haveria uma outra,
mas já a vendi, creio bem tê-la já vendido…
- Ai, que pena – respondia a outra, numa voz afetada – eu
adoro o trabalho dela.
- Já se sabe – explicava a vendedora – que quando o
artesão deixa a atividade tudo encarece. E todos começam a procurar as peças.
Eu juro, juro por Deus que estou a dizer a verdade.
A outra assentia enquanto mirava os barros hediondos.
- Agora fica um pouco mais caro. É raro, já não há
outras.
- Pois, compreendo.
- Foi o mesmo que sucedeu com a D. Luísa da Conceição.
- Ah, eu adooooro Luísa da Conceição! – retorquia a potencial
compradora, de olhos em alvo – Tenho dezenas de peças dela.
- Raríssimas, desde que deixou.
E logo, cheia de sabedoria comercial:
- É como as do António Jorge.
A outra reagiu como pretendido.
- Quem é? Não conheço!
- Ahh, um graaande artesão.
- Não tenho nada dele, não o vi em nenhuma feira.
- É natural. O António Jorge é novo, um estreante. Mas
virá a ser tão grande como a D. Luísa da Conceição. Quer ver obras dele? –
explicava, enquanto as despejava sobre a mesa, sob a mirada ávida da senhora de
sobretudo.
Eu neste momento já tinha passado por vários estados de
espírito. Resignada paciência por ver que havia alguém a atender antes de mim;
indignado aborrecimento ao constatar que não me ligavam nenhuma; genuína
estupefação ao descobrir um amplíssimo panteão de artesãos para mim
absolutamente desconhecidos (e, vá lá, irrelevantes), cujas obras são
disputadas a preços escandalosos por sessentonas de vozes anasaladas.
Deixando a “cliente rica” perder-se entre as maravilhas
saídas das mãos de António Jorge, a vendedora lá se dignou a reservar uma
fração do seu tempo ao “cliente pobre” – como de imediato me senti rotulado. Simpática,
confirmou ser a dona da vitrina. E quando lhe perguntei o preço dos tabuleiros,
respondeu-me entre sorrisos rescendendo a condescendência:
- Baratíssimos! Qualquer um pode comprar.
Confesso que estranhei, mas, como sou agarrado ao
dinheiro, nem desgostei do que ouvi. “Barato e giro é ótimo!”, pensei para
comigo mesmo.
Transposto o corredor, aberta a vitrina, a senhora lá
tentou convencer o “pobre” a largar mais uns cêntimos. Para quê aquele
tabuleiro, no fundo da montra? Não havia lá tantos outros, tão ou mais bonitos,
sem aquela garridice de cores, antes com “lindíssimos ramos de oliveira
(azeitonas incluídas) e alfazema”, num verde tropa e azulinho encantadores? E
se gostava de cores vibrantes, que tal o das riscas – tão mais adequado a
qualquer situação.
No entanto, perante a minha casmurra obstinação – o “pop”
ou nenhum! – lá transigiu.
Entretanto, novamente na loja, reparei num conjunto de
louça pedante e bastante grosseira (a lembrar a faiança do Rato e do Juncal, de
que nunca gostei particularmente) mas que reunia duas qualidades: era azul e
chamava-se “Costa Nova”. Com direito a um logotipo com palheiros e tudo.
- É lá fabricada, disse a senhora. Em Vagos.
Bom, Vagos não é Costa Nova, mas enfim…
Apontei para um grande bule, que me pareceu adequado
precisamente devido às suas dimensões.
- E qual é o preço daquele?
A vendedora olhou-me com um misto de repreensão e pena:
- Ah, é caro.
- Mas quanto é?
- Digo-lhe já. Para si caro. Tanto que vendo só o
conjunto.
Eu já começava a ferver. É certo que estou a milhas de
ser rico, é verdade que sou agarrado ao dinheiro, era muito provável que jamais
comprasse a porcaria do bule… mas a senhora deveria mostrar outra diplomacia!
- Ok, vou então pagar o tabuleiro. Aceita multibanco?
- Sim, mas… – A vendedora suspendeu a explicação por um
momento, como para anunciar algo de maravilhoso. – Se me pagar em dinheiro
faço-lhe um abatimento de… 10%!
Sentia-me cada vez mais parvo. Por um lado, tinha vontade
de lhe dizer “afinal, levo quinze tabuleiros e pago TUDO com cartão”. Por
outro, ganas de a ridicularizar começando a bater palmas de alegria, como um
pobrezinho muito bem comportadinho a quem dão uma esmolazinha e, entre
lagrimazinhas, agradecer o patrocínio da minha excelsa interlocutora. Mas a
sovinice inata voltou a dominar-me e não resisti ao pagamento em “cash”.
- É para embrulhar? – perguntou finalmente a senhora.
Estarrecido (“Mas a quem é que iria dar um tabuleiro?”,
pensei), expliquei rapidamente:
- Ah, não, é para consumo próprio. Compro-o para mim
mesmo.
A minha interlocutora – que lá no fundo estava certa de
ser uma alma santa pairando neste ermo de perdição – olhou-me com simpatia e,
numa voz de caridosa resignação (“são pobres e têm manias”, imaginei que ela
magicasse para consigo mesma), rematou:
- Faz tão bem. Um miminho para nós é sempre bom.
Deixei a loja aturdido. Mas a acreditar numa coisa. Que
aquela tonta está convencida de que praticou uma quase obra de caridade.
Gosto mesmo do meu tabuleiro novo! Quando acabar de beber
o meu chá na chávena de laca preta e comer o bolinho de coco que agoniza no
prato Satsuma, ponho a raquete aos ombros e vou para o ténis. Se a senhora
porventura me vir na rua, o que pensará? Que roubei a raquete? Ou que sou o
carregador de alguém mais afortunado? Ou que um homem generoso deu o seu
equipamento velho a um triste que ansiava por pisar um court?