Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Cãibra!!!!!!!!!!!!
Caso
vivêssemos no século XIX (graças a Deus que tal não acontece!), é provável que
se lesse na imprensa leiriense de hoje, na secção “Eccos da sociedade”:
“Cãibra.
O Exmo Senhor Doutor Luiz etc e tal,
digno professor de Direito n’esta cidade, soffreu ontem um desagradável revez.
Sua Excia encontrava-se a terminar o seu treino habitual de tennis, ao qual se seguiria um jogo com
o Exmo Senhor Eng. Miguel N., digno industrial na Marinha Grande, quando, ao
tentar acertar numa bola mais alta, deu um salto desajeitado e sentiu uma
pontada na perna esquerda. “Como que um repuxar”, especificou-nos S. Excia mais
tarde. S. Excia suspendeu immediatamente o jogo e perdeu o ponto, coxeando e
queixando-se de um mau estar. Acto immediato o treinador Gonçalo J., professor
bem conhecido do nosso tennis club
constatou tratar-se de uma cãibra. S. Excia, soffrendo, explicou que se o era
nunca tinha tido uma tão intensa. Assim, o treinador e J., um rapaz mais velho
que cremos também ser professor de gymnastica no lyceo, deram algumas
indicações a S. Excia. S. Excia, sempre escrupulosíssimo em pontos de saúde,
seguiu-as attentamente. Não satisfeito, communicou poucos minutos depois com a
sua Exma Família, nomeadamente com uma das suas Tias, illustre clinica no Sul
do Paiz. Devidamente medicado e aconselhado, S. Excia, dando uma vez mais
provas da sua inquebrantavel força de vontade, saiu hoje cedo à rua, como é
aliás seu timbre. Claudicando muito no principio, depressa começou a combater o
mal e a regularizar o passo – o qual contudo ainda não retomou o ritmo normal.
Espera-se porém que S. Excia recupere o mais rapidamente possível. Para tal
conta com uma saude férrea, os progressos da Medicina e o apoio dos leirienses –
que, nas palavras do sympathico doente, teem “como sempre, dados manifestações de
enorme solidariedade” – e da Redacção do nosso Jornal em particular. Prontas
melhoras e muitos jogos de tennis num
futuro próximo é o que lhe desejamos”.
Barroquismos
oitocentistas à parte, a verdade é que retirei pelo menos cinco ensinamentos
desta secante cãibra. Isto, claro está, depois de, nos meus exageros habituais,
achar que ia morrer, perder a perna ou pelo menos vê-la parcialmente amputada.
Ou então que as veias rebentariam e eu terminaria os meus dias exangue. Passaram-me os mais
rebuscados cenários pela cabeça em menos de dois minutos: que a antiquíssima
maldição das pernas incapacitadas dos Motta-Veiga agarrara mais este
descendente da família, que teria de passar a usar uma bengala, que daqui a uns
anos talvez me acontecesse o que sucedeu a uma velha tia do meu Avô – a senhora
deixou de andar e então passava os dias numa chaise longue. Quando ia para Poiares, quatro empregados levavam-na
numa cadeira até ao carro (a Tia não era magra) e, uma vez lá chegada, outros
quatro estavam à espera para a levar para dentro. E como arranjaria eu dinheiro
para pagar tanto pessoal?
Passado
o susto inicial, o que aprendi?
Em
primeiro lugar, que uma cãibra DÓI que se farta! Estava convencido de que todas
as cãibras eram semelhantes às “quedas dos músculos” quando dormimos. O que me
sucede muito raramente e sobretudo na praia, depois de começar a andar o dia inteiro
de bicicleta. Mas nesses casos, embora doa, esticamos a perna com força e já
está. No dia seguinte há quanto muito uma ligeira impressão.
Em
segundo lugar, que há muita gente a sofrer desta parvoíce muscular. E há
muitíssimos casos bem mais incómodos do que o meu. As pessoas têm sido muito simpáticas
e solidárias e – já se sabe, fazendo jus à boa prática nacional – aproveitam para
contar as suas próprias experiências na matéria. E já escutei algumas
historietas bem horríveis – isto aplicando de antemão o filtro de exageros que
sempre devemos aplicar às narrativas do género.
Em
terceiro lugar, que as ruas passeios não
estão preparadas para pessoas que tenham (ainda que muitíssimo ligeiras e
transitórias, como é o meu caso) dificuldades de locomoção. Decidi que iria ao
arquivo, de manhã e à tarde, o que implica percorrer uma parte relativamente
grande do centro da cidade (que tem contudo dimensões modestas) e subir uma
ladeira “aborrecida”. Bom… por um lado, é incrível o tempo extra que se demora
a fazer percursos básicos. Depois, todos os buracos e irregularidades de
pavimento e piso representam uma aventura: nada de os evitar e nada de mostrar
sinais de fraqueza!
Em
quarto lugar, que é muito, muito triste ser coxo. Mesmo em situações apesar de
tudo tão amáveis e fugazes como as minhas. As pessoas que passam na rua olham
com um misto de surpresa e pena (cidades pequenas, toda a gente se conhece de
vista). Tive de me preparar mentalmente antes de subir quaisquer escadas
(recusei-me a ir de elevador!) ou a escalar uma pequena colina. Transpirei
abundantemente à medida que andava, como se estivesse a fazer algo de
extraordinário.
Finalmente,
tive mais uma confirmação de que as nossas Mães realmente nos conhecem a fundo.
A minha, pelo menos, é assim. Quando lhe telefonei ontem, todo lamentos, foi-me
logo avisando para parar com as fitas. Já sabia bem o que podia resultar da
minha veia hipocondríaca exacerbada. E hoje cedo incentivou-me a sair.
Porque – estou convencido disso – sabe de uma terrível característica minha: o
orgulho, um tremendo orgulho.
E
assim estava bem ciente de que nem a barriga da perna (na panturrilha, como se
diz no Brasil) dorida e inchada, nem mesmo o incómodo inicial ao andar e subir
e descer escadas, nem mesmo os meus receios ridículos de a perna “apodrecer” e “cair”
eram capazes de suplantar a dose generosa de soberba que me anima. Por isso, o humilhante vacilar
perante gente que anda e corre, o humilhante semblante de comiseração de quem
passa, a humilhante assunção de que não se consegue fazer o que se pretende feririam
muitíssimo mais do que qualquer músculo dorido devido a uma cãibra de maus
fígados. Portanto, trataria de resistir tanto quanto possível.
A
hipocondria pode ser uma companheira de percurso fiel, mas os brios e vaidades expulsam-na
sempre que tenta obrigar-me a fazer má figura.
Ligeiramente
hipocondríaco e bastante convencido… Enfim, costuma dizer-se que um mal nunca
vem só. Deve ser verdade.