Talheres de peixe em Leiria
Aproveitando
alguma (ainda que muito relativa) recente folga nos meus afazeres, tenho-me finalmente
dedicado a tentar pôr em ordem a despensa, a mesa e a arrumação dos
meus vastíssimos domínios leirienses – sendo que umas e outros estavam, diga-se
em abono da verdade, passando por dias muito amargos.
Assim,
enquanto por um lado, nos minutos que precedem o sono, descanso a cabeça lendo
os textos xaroposos de Pedro Ivo (um escritor portuense oitocentista que tem
maravilhosos efeitos soporíferos graças à prosa melada dos seus Contos), por outro venho empregando parte
dos tempos livres em afazeres domésticos ou para-domésticos. Em teoria, ajuda a descomprimir - ao que dizem.
As
consequências de tais atividades não são todas igualmente risonhas. No que toca
aos Contos, se é certo que é
agradável ter encontrado semelhante narcótico, também é verdade que o adormecer
constantemente com óculos postos,
candeeiro aceso e Pedro Ivo sobre a barriga pode tornar-se incómodo. Sobretudo
quando acordo a meio da noite (com o estrépito do Ivo a cair da cama) e,
momentaneamente enganado pelo brilho do candeeiro, penso já é tardíssimo, o sol já está bem alto! e me levanto com um salto
da cama.
No
que diz respeito aos afazeres domésticos – matéria na qual, sejamos francos,
sou bastante nabo – a sorte tem-me por vezes sorrido, outras nem tanto.
Há
uns tempos alguém me rotulou como sendo A
pessoa mais beta que conhecia, tão beta que conseguia disfarçar essa “betice”
de forma bastante eficaz. Perante o Eu,
beto?? indignado que devolvi, a réplica veio repleta de detalhes: Não só tens um percurso escolar suuuuper
beto, como gastas os teus tempos livres em treinos de ténis, pertences a grupos
dos jesuítas (eu gostei particularmente desta alusão a semelhantes “grupos”, como se fossem umas sociedades
secretas com fins nebulosos), és
professor de direito e passas montes de tempo (uma tremenda injustiça!) em livrarias, alfarrabistas e antiquários.
Isto quando não estás a desenhar e a fazer genealogias. Almoças e tomas café na
Sociedade de Geografia e recusas-te a aceitar certos aspetos da modernidade,
como se vê nas exigências com os chapéus dos alunos (não deixo entrar
rapazes com cabeça coberta na aula) e no
facto de até em Leiria teres talheres de cozinha e talheres “para almoçar” (info
que a pessoa em questão diz ter colhido num dos posts destes Prazos).
Não
me vou dedicar a rebater semelhante rol de injustiças, mas houve um episódio recente
que me fez voltar a pensar nele. É verdade
que eu, em Leiria, tenho uns talheres com que cozinho (enfim, cozinhar…
aquecer umas coisas, cortar outras, mexer meia dúzia de mistelas) e uns outros,
mais apresentáveis, que vão à mesa. Estes, vou-os comprando aos poucos no
Continente da terra (admito porém que escolhi a linha “imperador” por ter um look intemporal e achar o nome estiloso).
Ora, há meia dúzia de dias, tendo comprado uma embalagem de douradinhos – o que para todos os
efeitos é peixe – decidi finalmente
investir na compra de umas facas e garfos adequados. Nada mais fácil – pensei eu, não tanto preocupado com o facto de
haver ou não talheres de peixe (na minha cabeça, era impensável que não existissem),
mas mais com o preço que me cobrariam por eles. Pois bem… cheguei ao expositor
dos faqueiros, mirei, procurei, vasculhei de alto a baixo e … nada de talheres
de peixe! Nem da linha “imperador” nem de qualquer das suas congéneres. Apenas
divisei uma meia-dúzia de “linha branca” relegados para um canto triste. Chamei
a menina responsável pela secção e perguntei-lhe com naturalidade:
- Os talheres de peixe
estão esgotados? Eu queria uns destes “imperador”.
- Como disse?
- Talheres de peixe,
está a ver? Aquelas facas com lâminas ligeiramente curvadas e os garfos com uns
dentes um pouco diferentes. Preciso de meia dúzia.
- Não temos.
- Pois, sim, já vi. Mas
quando voltam a ter? Ainda esta semana?
- O senhor não percebeu.
Não temos mesmo esses talheres.
- Mas como é isso
possível?
- Ninguém os usa.
- Ora, mas pelo que
estou a ver esta linha “imperador” tem imensos extras… e não tem talheres de
peixe??
- Não, senhor. Da linha
temos apenas os talheres que os clientes mais usam.
- Como colheres
dentadas para fruta?
- Sim, têm procura.
- E garfos-faca para
bolos??
- Precisamente.
- E colheres
compridas para sumo???
- É isso.
- Está-me a dizer que
em Leiria as pessoas compram mais estas incompreensíveis colheres com dentes
do que talheres para peixe?
- Não me lembro de ninguém
(e
a menina acentuou maldosamente este ninguém)
me ter pedido talheres para peixe “imperador”
ou de qualquer outra das nossas linhas.
E
acrescentou:
- E várias pessoas vêm
comprar faqueiros mesmo para casamentos.
Não
querendo dar parte de vencido, ainda perguntei:
- Mas se é assim porque
é que têm esta embalagem “branca” com talheres de peixe? Afinal parece que há
gente que ainda os procura.
A
resposta foi seca e terminante:
- Certamente haverá, mas eu nunca vi nenhuma!
E
foi nessa altura que a sentença injusta proferida uns tempos antes me assaltou
a memória… Passados uns instantes, espanejei-a com energia e pensei Recuso-me a ceder nisto!...
Muito
dificilmente me dou por vencido: e mal cheguei a casa fui direito ao Google para
aferir da verdade do que me tinha dito a funcionária. Afinal há talheres de peixe “imperador”.
Confesso que fiquei com uma vontade danada de lá voltar e de lhe encomendar uns
tantos… umas três dúzias, só para ser irritante!... Mas isso seria uma
criancice excessiva mesmo para os amuos de LCO! ;)