Wednesday, December 10, 2014

Talheres de peixe em Leiria

Aproveitando alguma (ainda que muito relativa) recente folga nos meus afazeres, tenho-me finalmente dedicado a tentar pôr em ordem a despensa, a mesa e a arrumação dos meus vastíssimos domínios leirienses – sendo que umas e outros estavam, diga-se em abono da verdade, passando por dias muito amargos.
Assim, enquanto por um lado, nos minutos que precedem o sono, descanso a cabeça lendo os textos xaroposos de Pedro Ivo (um escritor portuense oitocentista que tem maravilhosos efeitos soporíferos graças à prosa melada dos seus Contos), por outro venho empregando parte dos tempos livres em afazeres domésticos ou para-domésticos. Em teoria, ajuda a descomprimir - ao que dizem. 
As consequências de tais atividades não são todas igualmente risonhas. No que toca aos Contos, se é certo que é agradável ter encontrado semelhante narcótico, também é verdade que o adormecer constantemente com óculos postos, candeeiro aceso e Pedro Ivo sobre a barriga pode tornar-se incómodo. Sobretudo quando acordo a meio da noite (com o estrépito do Ivo a cair da cama) e, momentaneamente enganado pelo brilho do candeeiro, penso já é tardíssimo, o sol já está bem alto! e me levanto com um salto da cama.
No que diz respeito aos afazeres domésticos – matéria na qual, sejamos francos, sou bastante nabo – a sorte tem-me por vezes sorrido, outras nem tanto.
Há uns tempos alguém me rotulou como sendo A pessoa mais beta que conhecia, tão beta que conseguia disfarçar essa “betice” de forma bastante eficaz. Perante o Eu, beto?? indignado que devolvi, a réplica veio repleta de detalhes: Não só tens um percurso escolar suuuuper beto, como gastas os teus tempos livres em treinos de ténis, pertences a grupos dos jesuítas (eu gostei particularmente desta alusão a semelhantes “grupos”, como se fossem umas sociedades secretas com fins nebulosos), és professor de direito e passas montes de tempo (uma tremenda injustiça!) em livrarias, alfarrabistas e antiquários. Isto quando não estás a desenhar e a fazer genealogias. Almoças e tomas café na Sociedade de Geografia e recusas-te a aceitar certos aspetos da modernidade, como se vê nas exigências com os chapéus dos alunos (não deixo entrar rapazes com cabeça coberta na aula) e no facto de até em Leiria teres talheres de cozinha e talheres “para almoçar” (info que a pessoa em questão diz ter colhido num dos posts destes Prazos).
Não me vou dedicar a rebater semelhante rol de injustiças, mas houve um episódio recente que me fez voltar a pensar nele. É verdade que eu, em Leiria, tenho uns talheres com que cozinho (enfim, cozinhar… aquecer umas coisas, cortar outras, mexer meia dúzia de mistelas) e uns outros, mais apresentáveis, que vão à mesa. Estes, vou-os comprando aos poucos no Continente da terra (admito porém que escolhi a linha “imperador” por ter um look intemporal e achar o nome estiloso). Ora, há meia dúzia de dias, tendo comprado uma embalagem de douradinhos – o que para todos os efeitos é peixe – decidi finalmente investir na compra de umas facas e garfos adequados. Nada mais fácil – pensei eu, não tanto preocupado com o facto de haver ou não talheres de peixe (na minha cabeça, era impensável que não existissem), mas mais com o preço que me cobrariam por eles. Pois bem… cheguei ao expositor dos faqueiros, mirei, procurei, vasculhei de alto a baixo e … nada de talheres de peixe! Nem da linha “imperador” nem de qualquer das suas congéneres. Apenas divisei uma meia-dúzia de “linha branca” relegados para um canto triste. Chamei a menina responsável pela secção e perguntei-lhe com naturalidade:
- Os talheres de peixe estão esgotados? Eu queria uns destes “imperador”.
- Como disse?
- Talheres de peixe, está a ver? Aquelas facas com lâminas ligeiramente curvadas e os garfos com uns dentes um pouco diferentes. Preciso de meia dúzia.
- Não temos.
- Pois, sim, já vi. Mas quando voltam a ter? Ainda esta semana?
- O senhor não percebeu. Não temos mesmo esses talheres.
- Mas como é isso possível?
- Ninguém os usa.
- Ora, mas pelo que estou a ver esta linha “imperador” tem imensos extras… e não tem talheres de peixe??
- Não, senhor. Da linha temos apenas os talheres que os clientes mais usam.
- Como colheres dentadas para fruta?
- Sim, têm procura.
- E garfos-faca para bolos??
- Precisamente.
- E colheres compridas para sumo???
- É isso.
- Está-me a dizer que em Leiria as pessoas compram mais estas incompreensíveis colheres com dentes do que talheres para peixe?
- Não me lembro de ninguém (e a menina acentuou maldosamente este ninguém) me ter pedido talheres para peixe “imperador” ou de qualquer outra das nossas linhas.
E acrescentou:
- E várias pessoas vêm comprar faqueiros mesmo para casamentos.
Não querendo dar parte de vencido, ainda perguntei:
- Mas se é assim porque é que têm esta embalagem “branca” com talheres de peixe? Afinal parece que há gente que ainda os procura.
A resposta foi seca e terminante:
- Certamente haverá, mas eu nunca vi nenhuma!
E foi nessa altura que a sentença injusta proferida uns tempos antes me assaltou a memória… Passados uns instantes, espanejei-a com energia e pensei Recuso-me a ceder nisto!...  
Muito dificilmente me dou por vencido: e mal cheguei a casa fui direito ao Google para aferir da verdade do que me tinha dito a funcionária. Afinal talheres de peixe “imperador”. Confesso que fiquei com uma vontade danada de lá voltar e de lhe encomendar uns tantos… umas três dúzias, só para ser irritante!... Mas isso seria uma criancice excessiva mesmo para os amuos de LCO! ;)