Bouncer no Criptopórtico
Dediquei,
à semelhança do resto da minha família, três horas da tarde de hoje colaborando
voluntariamente no Dia dos Museus. A minha condição de filho de um dedicado
sócio da AMIC não permitia outra coisa – e lá fui eu destacado para servir de
guarda (ou bouncer, para dar outro
estilo) no MNMC.
Foi
uma experiência memorável a vários títulos.
Inicialmente
tinha-me sido destinado um único emprego: ajudar no conhecido criptopórtico. No
entanto, necessidades de último momento levaram a que fosse em primeiro lugar
convocado para apoiar a sala dos media.
Pois, é verdade… de todas os espaços do museu era certamente aquele com quem
tinha menos afinidade. Mas o certo é que as ordens não se discutem e uma vez
munido do meu arsenal bounceresco (nada
de colts ou navalhas, mas apenas um
cordão identificador e um walkie talkie)
rumei um tanto apreensivo ao universo cibernético-museológico. “E se os miúdos me pedem ajuda naqueles
joguinhos que lá há?” – pensava eu – “Não
faço a mais pequena ideia como aquilo se faz!”.
Depressa
me desenganei. Afinal a sala dos media estava
destinada para o que podemos chamar a
hora do conto de Milú. Em regra (julgo eu) quando um adulto se predispõe a desfiar
meia dúzia de histórias a um grupo de crianças exige apenas meia dúzia de
almofadas ou assentos. Todos se acomodam o melhor possível e a coisa flui com naturalidade.
Não com Milú. Milú aprecia o espetáculo; Milú ama a cenografia. Milú encarna a
personagem e não se contenta com uns tantos coxins desemparelhados espalhados
pelo piso. Milú é um ser complexo e só pode ser compreendida se analisada em
várias dimensões. Por um lado, (i) o
cenário. Amontoou uma série de mesinhas a um canto da divisão espartana e sob o
austero teto de masseira dos bispos-condes decorou-as profusa e coloridamente.
Caixinhas com desenhos de lábios (eu vi!), letras coloridas formando o seu
nome, potes e mais bricabraque luminescente.
À frente de todo este aparato dispôs várias almofadas onde se recostou
cobrindo-se com um uma espécie de tapete ao qual chamou manta temática. Essa manta,
percebi depois, era uma colaboradora valiosa da narração. Ao seu lado jazia uma
espécie de tamborete bordado onde estavam representados alguns contos infantis.
Confessem que o panorama era capaz de chamar a atenção do menos crítico dos
espíritos. ;) Por outro lado, (ii) a
própria Milú. Falamos de uma mulher nos seus sessenta que irrompe envolta num
tule negro sobre saia colorida, mitenes pretas na mãos, t-shirt vermelha com um
esquilo desenhado, grande alfinete com outro esquilo, enorme laço também rubro
nos cabelos. Milú mais parece uma bruxa subaquática do que uma amável senhora
que se dispõe a entreter as crianças. Temo o pior. Vão começar os choros, os
passos para trás, a vontade de ir embora. Mas não: os miúdos são bem mais duros
do que supus e encaram Milú com um misto de estoicismo e indiferença. Provavelmente
já conheceram demasiadas do género para se espantarem com a entrada de mais
uma. Antes de começar a história, Milú historia-se a si mesma. Ficamos então a
saber que foi professora de português e francês (who cares??), trabalhou numa biblioteca e aí começou a desenvolver
a sua capacidade para entreter com contos os jovens leitores. Até aqui tudo
bem. O retrato foi-se contudo tornando um pouco mais pesado quando Milú se
apresenta como contautora (sic) e anuncia que trará uma história
publicada num dos seus livros infantis. Mais: brande o volume perante a
assistência composta por crianças e respetivos pais. Por um momento receei que
acrescentasse: No final podem comprar um
exemplar. Dirijam-se à minha assistente que está ali ao canto. E eu autografo
os dez primeiros. Felizmente não chegámos a tanto. Por fim, (iii) a história. Ressalve-se antes de
mais que eu tive a ventura (que só agora aquilato) de ter nascido numa família
de contadores de histórias muito inspirados. A minha Avó era especialista em
literatura infantil, a minha Mãe e Tios sempre foram exímios narradores e o meu
Pai entretinha-nos com as aventuras do melro Basófias, o melro municipalista que ajudava o presidente
da câmara e tornava Coimbra uma cidade ainda melhor. Por isso não estava
preparado para o embate com a obra de Milú e muito menos com o seu O esquilo que amava as palavras. Entre
gestos, gritos, bonecos de peluche em forma de animais e a tal manta temática, Milú narrou-nos as
aventuras do Esquilo Quilas. Aparentemente Quilas vivia para comer “os restinhos de nozes que tinha em casa” (várias
vezes almoçou e jantou esses “restinhos”),
amar a culta Esquila Lila e procurar palavras de forma a expressar a sua paixão
nos livros do palacete do Sr. Roquette (sic).
No entanto, o Quilas, por alguma estranha razão que não alcancei, não se
limitava a ler os livros dos Roquette mas também roubava as palavras que
apreciava. Resultado: os volumes ficavam todos truncados e os Roquette
compreensivelmente furibundos. Para que queria o Quilas todas essas palavras?
Pelo prazer da leitura? Para aumentar a sua cultura geral? Para atormentar os Roquette?
Não, simplesmente para escrever uma carta apaixonada a Lila. Roubando tantas
palavras quanto podia lá conseguiu alcançar o seu objetivo. O esforço valeu a
pena: Lila ficou rendida. Eu confesso que não percebo o que é que o Quilas via
na Lila. Esta aparentava ser uma rapariga insuportável de presunçosa: recitava
a todo o momento poemas (tinha uma predileção por Eugénio de Andrade) e
idealizava saídas românticas no Museu Machado de Castro. Fui chamado para o
criptopórtico antes de ouvir a conclusão, mas espero que Milú tenha emendado a
mão a tempo: temo bem que Quilas não amasse as palavras, como a contautora ingenuamente parecia
acreditar. O Quilas queria era sair com a Lila e viu nas palavras um mecanismo
eficaz para atingir o seu fim.
Mas
eis-me enfim no criptopórtico, o meu local de serviço base. Conheci o meu “chefe”,
o sr. Pita. O sr. Pita foi direto e eficaz depois do aperto de mão:
-
Isto é uma seca do caneco mas controla-se
bem. Eu fico aqui à entrada e tu vais dando umas voltas por aí para ver como
corre tudo. Não precisas de estar sempre a andar. Se e quando estiveres cansado
arranja um banco e senta-te. Eu chamo-te quando precisar de sair para fumar um
cigarro. Um gajo tem de fumar. Fumas?
- Não.
- Tudo bem, mas eu
depois deixo-te sair uns cinco minutos para espairecer.
- Ok.
- Ah, e trato-te por tu
porque és um miúdo.
O
jurista e prof. de 36 anos acatou estas palavras sem réplica e começou a
patrulhar as longas galerias do criptopórtico. Muito as patrulhei eu. A certa
altura, fui render o sr. Pita (que ia fumar o seu cigarro e esticar as pernas
ao ar livre) e lá fiz um pouco de trabalho “de adulto”: indicar aos visitantes
a sequência da visita e informar via walkie
talkie quando abandonavam o espaço. A dado momento o sr. Pita é substituído
pelo Fernando. Mais palrador do que o antecessor, Fernando matava as horas conversando
longamente via walkie talkie com
outra funcionária. O seu tagarelar constante era porém ouvidos por todos os que
andavam munidos com maquinetas daquelas – sim, todos os demais empregados do museu e os numerosos voluntários.
Apesar desde gosto pelo exibicionismo, Fernando também era OK. Manteve o
esquema do sr. Pita retocando apenas um ou dois aspetos: eu deveria ser
absolutamente intransigente no percurso dos visitantes, ajudar quando
aparecesse alguém que não soubesse falar português e comparecer quando o
ouvisse chamar-me. Um breve Luís significava
que o Fernando precisava de ir fumar um cigarro e havia que o revezar. De resto,
continuar a ronda galerias adentro. Valeu a pena! É extraordinário ouvir as barbaridades
que os transeuntes proferem perante aquelas pedras venerandas. Desde o gordo
que tentou impressionar uma possível conquista esforçando-se por traduzir um
epitáfio (Sabes que eu sei latim; isto
para mim é canja!) e terminou num inglório gaguejar ao casal que mirando um
dos bustos espalhados pelo espaço comentava Era
bolachuda, a Agripina!
Mas
as minhas preferidas foram mesmo duas senhoras velhotas de pronúncia ciciante
que trocavam entre si observações desoladas:
-
Não vás por aí. Não vale a pena. Não tem
nada para ver. Só há lá uns ossos! (eu admito que por muito que me esforçasse
não encontrei osso nenhum! Portanto, ou eu sou cego ou as senhoras muito
criativas).
-
Ai, isto não tem jeito nenhum!
- É tudo igual: pedra,
pedra, pedra… parece uma gruta!
- Anda, vamos embora.
Vamos atrás daquelas senhoras.
- Daquelas não!
- Porquê?
- Então tu não vês que
elas são estrangeiras?