ROTINAS
Sou
um absoluto fã de rotinas e delas depende – diga-se, em abono da verdade – em boa
medida a minha sanidade mental quotidiana. É graças à minha devoção pelas
rotinas que raramente sinto a estranha sensação de que muitos dos que me
rodeiam se queixam quando afirmam estar a ser assoberbados pela realidade, sugados pelo dia a dia e constatam ao
final da noite que pouco ou nada fizeram do que tinham planeado à mesa do
pequeno-almoço.
Não sei a razão desta propensão para a rotinização da minha vida, mas tenho
algumas desconfianças. Por um lado, sou um tipo que não lida bem com pressões
de última hora. Sabem o nervoso miudinho e o stress equivalente a mil pontadas de alfinetes que alguns asseveram
ser indispensável para os levar a lançar mãos ou a terminar uma dada tarefa? O
fator pressão-pois-o-tempo-está-a-chegar-ao-fim? Bom, eu não me integro de modo
algum nessa tribo. Se me alertarem “tens meia hora para despachar isso, por
isso toca a apressar”, é certo e sabido que – apesar de naturalmente dar o meu
melhor para me desincumbir da obrigação (e de eventualmente até o fazer com
sucesso) – não reagirei com alegria a esse “estímulo”. Sim, eu sei... seria um
fiasco em qualquer programa do género do masterchef!
Ora, a rotina, a ideia do trabalho que se faz por etapas, é de alguma maneira
uma alternativa a tal modo de agir. Por outro lado, sou alguém que detesta (i) movimentos de pára-arranca e (ii) terminar uma coisa e não começar
imediatamente a fazer outra. Note-se que esta faceta não se relaciona apenas
com o trabalho (embora se reflita naturalmente também nessa parte da minha
vida). Na verdade, repercute-se em muitos outros aspetos do meu quotidiano. Por
exemplo, quando acabo de ler um livro começo imediatamente a degustar o
seguinte. Posso ler apenas as primeiras três páginas, ou mesmo o primeiro
parágrafo, do novo livro, mas sinto-me “desconfortável” se não o fizer. Ou
quando acabo um determinado desenho, principio ato imediato a idealizar o
próximo. O esquema é semelhante: muitas vezes não se trata de mais do que dois
rabiscos ou de um esboço rápido. Mas é o começo de algo novo. Trata-se de certa maneira de uma aplicação ao quotidiano do
velho adágio rei morto, rei posto.
Finalmente, suspeito que esta minha “mania” se prende também com um misto
educação/propensão natural. A minha progenitora (que creio ser do mesmo modelo)
sempre me ensinou a não perder tempo, o que se traduz forçosamente em estar
sempre a fazer alguma coisa. Isto é, em estar permanentemente a construir algo. Note-se que esta
filosofia não se aplica somente à esfera laboral. Na verdade, transcende-a
muitíssimo. O próprio ócio é suscetível de ser produtivo. À sombra do velho
lema da Trisavó Joaninha (só se aborrece
quem é estúpido), o qual creio ter sido temperado com os genes
terrivelmente empreendedores dos manos Freire da Cruz e de Mathias bem como com
uma exegese profunda da parábola dos talentos, tudo é encarado como obra em
construção. Um perene edificar que é muito gratificante e envolvente – e por
vezes bastante recompensador. Queres algo
que não tens? Não chores nem te lamentes. Lança as mãos e trata de o conseguir.
Falhaste à primeira? Toca a voltar a tentar! Não sejas uma formiga! Reage,
força, e vai em frente! Assim, para se viver intensamente nesta filosofia –
que é a minha por educação e por opção – criar e manter rotinas são opções
sensatas. Já me disseram que esta minha faceta tem algo de tenebroso. “Não vês
que essa necessidade de estar sempre a
fazer algo, a construir algo – nem que seja mais um desenho, ou plantar mais um
pinheiro, ou conseguir ganhar mais pontos no ténis, ou encontrar mais um
argumento – é perigosamente capitalista?”
– perguntaram-me certa vez. “Mais, que é a verdadeira
essência do capitalismo?”. Enfim, não sei verdadeiramente o que responder.
Mas se assim for, não há maneira de lhe fugir. Entre ser o Luís e ser
alguém-que-se-recusa-a-ser-o-que-é-por-medo-de-ser-rotulado não há indecisões
de escolha, certo?
As
rotinas são consequentemente uma potencial prisão ou uma porta para a autonomia.
Podem ser nocivas caso as “percamos” e não as consigamos retomar. Ou quando nos
aferramos a rotinas sem sentido e que nos são danosas. Tal é suscetível de nos
fazer sentir semi-errantes e implicar mau-humor, alguma instabilidade e
resultados menos risonhos do que se esperaria. O antídoto para o combate deste “perigo”
é simples: ir adaptando as rotinas (só um verdadeiro novato na matéria é que
julga que um ser verdadeiramente rotineiro não cria novas soluções para cada
situação e não as vai moldando e aperfeiçoando) e ter na algibeira meia dúzia
de alternativas às quais se possa lançar mão nas alturas em que as rotinas
falham.
Podem
por outro lado ser inestimáveis por nos permitirem viver em praticamente todo o
lado sem que nos sintamos mal com a vida ou deslocados. O segredo é em cada
nova situação/contexto forjar uma nova rotina. Garanto-vos, por experiência
pessoal, que resulta. Há no entanto que ter força de vontade e contar com um
ego forte. Alguém rotineiro faz as suas rotinas,
ainda que (é claro) as adapte à vida que deseja. Um tontinho sem amor-próprio
nem objetivos não o consegue fazer: tem sempre de ir atrás dos demais,
perdendo-se entre as rotinas diferentes que aqueles seguem.
Pois
bem, hoje depois do almoço senti-me por breves momentos um bocado “perdido” por
me ter afastado das minhas rotinas leirienses habituais. Vários fatores
concorreram para este estado estranho. Antes de mais, por estar a decorrer o II
ciclo de aulas abertas resultantes de uma parceria do curso de AP com a câmara
municipal de Leiria (que voltei a organizar este ano, e que estão a correr
super bem!), demorarei um dia mais na cidade. Em regra, abandono as margens do
Lis às 4ªs. Por isso, na minha cabeça às 15 horas devia estar a sair da cidade.
O que não aconteceu. Por outro lado, hoje – ao contrário do que sucede todas as
4ªs feiras bem cedo – não tive treino de ténis. O treinador está com gripe e
naturalmente não pôde aparecer. E eu passei parte da manhã a pensar que me
tinha esquecido de trazer a raquete ou que a tinha deixado em algum lugar pelo
caminho! Paralelamente, a aula aberta de hoje foi verdadeiramente bem-sucedida
pelo que se arrastou muito mais do que previsto. Resultado: cheguei a casa
francamente depois do que era normal (e a tentar combater a ideia recorrente de
que já estava atrasado para arrumar a mala e ir embora!) e acabei por não
conseguir dormir a minha meia-hora regimentar de sesta. À semelhança do meu
caro amigo ZMN, sou um defensor convicto das virtudes da sesta. No meu caso,
meia hora de repouso faz milagres pois quando acordo sinto-me quase tão fresco
e pronto a voltar a lançar-me ao trabalho como de manhã. Por fim, também houve
uma alteração no regime das sopas. Eu
explico. Todos os dias a dupla de irmãs que explora o bar da nossa residência
faz sopas variadas para quem as quiser comprar. Eu sou um cliente fiel desde o
primeiro dia e em regra compro sempre uma dose para cada refeição. As ditas
manas – que provavelmente também gostam de rotinas – usualmente fazem os mesmos
tipos de sopa (será que se pode dizer tipos
de sopa??) todas as 2ªs, 3ªs e por aí em diante. Assim, eu sei que às 2ªs é
caldo verde, às 3ªs sopa de peixe e às 4ªs sopa de legumes. Acresce que as
manas quando em regra se encomendam duas doses de sopa para um mesmo dia não as
entregam em dois recipientes individuais mas num maior. Até aqui tudo ok. Ora,
hoje não só a sopa não era habitual como era canja! Blergh! Todos os que me conhecem sabem que não sou
propriamente um apreciador de canja. Mais: as manas, sempre inexcedíveis,
procuraram que a minha canja tivesse alguns extras de que os
apreciadores da dita gostam mas eu detesto. Assim, continha pedaços
enormíssimos de cebola (bleeeeeeeergh!) e… duas patas de galinha
(bleeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeergh!)! Quando extraí tais coisas da caixa
da sopa (lamento, mas não comi nenhum destes complementos), a bancada da cozinha
parecia a mesa de trabalho de um aprendiz de macumba. Ainda tive vontade de dizer “Enganaram-se no Cabral: o meu Pai é que gosta de canja”, mas isso
não me ia valer de nada pois duvido muitíssimo que o meu progenitor viesse a
Leiria apenas para degustar patas de galinha e nacos de cebola em canja.
Tudo
isto me desconcertou um bocado. Estava em Leiria quando não devia, não tinha
dormido a sesta, a raquete não estava às costas (como era suposto) e o almoço
constara de canja-macumba! Tentei rabiscar um pouco mas, ao contrário do
que é habitual, os resultados não foram 100% eficazes. Urgia assim tentar outra
via. E, como bom amante de rotinas, recorri a uma das minhas soluções de
recurso.
Quando
a nossa rotina é alterada, nada melhor do que uma injeção
forte de algo que gostemos muito, estejamos habituados a fazer e nos concentre
por completo! Um par de horas depois, saímos com a sensação de que avançámos no
trabalho e de que as coisas voltaram ao normal! No meu caso, e em Leiria, a
nova “sala” da biblioteca municipal é um remédio eficaz!
Há
um par de anos, uma professora lisboeta doou ao município não só a sua rica
biblioteca “ultramarina”, muitíssimo bem fornecida de obras relativas à Índia,
Moçambique e Macau, mas também as mobílias e outras peças chinesas que trouxe
da sua passagem pela Cidade do Santo Nome de Deus. O município teve a feliz
ideia de aceitar o espólio e a sorte de contar com a dedicação de um técnico
que desde então se devota a pôr em ordem o grande mas confuso legado. Imaginem
a chegada ininterrupta de caixotes e caixotes de livros e documentos sem ordem
alguma: um desafio fascinante mas exigente, certo? Praticamente desde o
primeiro momento que recorro a esse magnífico e improvável “filão oriental”
nascido num local tão inesperado e sirvo um pouco de “consultor” dos
arquivistas e bibliotecários encarregados desta empreitada.
Recentemente
abriu-se uma sala exclusivamente dedicada ao fundo – e, para mim, é uma
maravilha lá trabalhar. Desde logo, tem imensos livros que uso nas minhas
pesquisas, parte deles muito difícil de encontrar em Portugal. Por outro lado,
dispõe de um grupo de técnicos impecáveis, com quem me dou bastante bem. Por
fim, está disposta de uma maneira perfeita para aí desenvolver a minha
investigação. Isto porque não só dispõe de mesas modernas e confortáveis para
trabalharmos como também conta com uma parte decorada com os móveis de tamarindo
enegrecido e madrepérola macaístas dos quais tanto gosto e que me fazem sempre
sentir em casa. Ninguém os usa, mas estão lá e de lá não saem. Exatamente como me
é confortável.
Por
isso, hoje, esse foi o meu antídoto: enfrentar a descoordenação resultante de
uma quebra de rotina com uma dose forte de algo que rotineiramente faço com
todo o prazer. Fui até à biblioteca, troquei meia dúzia de palavras com o Miguel,
sentei-me na secretária simples mas funcional e trabalhei afincadamente em
torno do padre Salvador Baptista Canã – um dos meus deputados BCs oitocentistas
que tão bem se sentia no Chiado como na Praça das Sete Janelas de Pangim. Atrás
de mim (eu sabia, não precisava de confirmar) estava o conforto das estantes
atulhadas de velhos cartapácios “goeses” e os floreados móveis de uma Macau de
outros tempos. Ao lado da minha mesa de linhas retas havia apenas um rolo
chinês parecido com os do Lótus Azul e com os do apartamento do Tintim em
Bruxelas (na Rua do Lavrador, 26, já se sabe).
Nada
podia ser mais familiar, reconfortante, produtivo… e rotineiro!
Às
seis saí da biblioteca curado! Um café no Vasco das Raivas (outra rotina), um
cartucho de castanhas a cheirar a outono (outra!) e um giro rápido
pelas livrarias e o Eddie Vedder no mp3 (mais duas rotinas!) foram o complemento posterior perfeito!
Afinal
tudo continua a funcionar na perfeição! ;)