C!
Quebro
excecionalmente o meu período de retiro por motivos de força maior… Quando um
texto (ou um desenho: o processo é o mesmo) “quer sair”, é difícil reprimi-lo.
Começa a tocar um sininho nas profundezas da consciência e, se não nos
apressarmos a emudecê-lo, em breve se tornará num carrilhão barroco e ensurdecedor
badalando os pobres neurónios de quem o tem de suportar.
Faço-o
assim por uma simples razão: para procurar dar uma resposta à pergunta que me
veio a martelar a cabeça durante toda a viagem de camioneta (e vim pelo período
longo, com direito a visita a Venda das Raparigas, Alto da Serra, Alcoentre e
outras terras igualmente prósperas e cosmopolitas) desde a capital até Leiria.
Mas,
antes, importa contextualizar. Acabou há meia dúzia de horas mais um colóquio
coorganizado pelo infatigável E. Tive a ventura de ser chamado a participar
precisamente por intermédio do dito coorganizador, e devo desde já confessar
que aprendi uma série de coisas interessantes.., nomeadamente que tenho de
reler o Said. Há certamente algo que me escapou da única vez que peguei naquele
livro! Como é habitual nestes encontros, falou-se muito sobre lusofonia, abraçaram-se
velhos conhecidos e amigos, trocaram-se francas gargalhadas em torno de um
goles de cerveja (mas não no congresso propriamente dito, pois lá só tínhamos ESTRITAMENTE
direito a quatro doses de “café e bolo” ) e abordaram-se temas mais sérios.
Houve os momentos non sense da praxe
e ficámos todos cheios de vontade de que o E. volte a dinamizar um novo meeting em breve.
Mas
houve algo mais…
Numa
das sessões, uma oradora, ao ser confrontada por vários de nós sobre a
conclusão politicamente ambígua da sua intervenção, retorquiu com calor:
- Não há ambiguidade
pois não há opinião. Um historiador não pode ter opinião. Só lhe interessa o
que está nos documentos, nada mais. Tem de ser isento… Não é como vocês de
letras… nós não deixamos mesmo transparecer as nossas convicções.
Confesso
que quase tive de tapar fortemente a boca com as duas mãos para não replicar de
forma precipitada e insensata:
-
Olhe que isso de ser historiador e
asséptico deve ser uma coisa muito aborrecida e castradora. Eu graças a Deus tenho
pretensões a historiador do direito... e entre nós (deve ser a diferença da
tónica jurídica) quem tem voz é quem tem opiniões marcadas, convicções
veementes, pontos de vista pessoais. Isso de gente que apenas fica a mirar e
nada opina de duas, uma: ou a pessoa não conhece o assunto de forma
suficientemente profunda – e por isso ainda não tem uma opinião formada, mas
espera-se que entretanto a encontre – ou há uma grande dose de hipocrisia
envolvida em todo o processo.
Mas
fui ajuizado e contive-me. E fiquei o resto do tempo a matutar naquilo.
Noutra
das sessões fui confrontado com algumas visões quase monolíticas da realidade:
ou é “A” ou é “B”. Nada de variações, o alfabeto não tem nem precisa de mais
letras: “A” e “B” chegam e sobram!
Deve
ser novamente defeito de homem de leis. Uma das ideias que mais me marcou das
várias que me transmitiu um professor de processo de cujas aulas gostei imenso
foi:
No direito não há
branco nem preto. Tudo é cinzento. Mas o cinzento pode ter tantos tons e
gradações!
E
cada vez mais acho que ele estava cheio de razão! À medida que o tempo passa e
que eu próprio vou dando umas braçadas vigorosas no oceano da investigação
apercebo-me do bom – na verdade, do ótimo – que é não haver uma só escolha entre
duas magras opções e da doce e única liberdade (e exigência, pois dá trabalho!)
de termos oportunidade de exprimir a nossa
opinião e a nossa versão sobre
determinada questão. Opinião essa que não tem de ser monolítica e eterna, mas
que não pode também resvalar para o abismo da inconstância.
Quem
quer ser um carneiro que se limite a seguir todos os demais? E que “rebanho”
deseja que se lhe junte um carneiro que em nada se distinga daqueles que já são
seus membros? Qual seria a utilidade dessa nova aquisição? Fazer número?
E qual é a graça
de analisar o que quer que seja de
forma asséptica? Qual é o prazer que
se retira de se evitar uma discussão acalorada em torno dos argumentos que cada
um sustenta? Qual é a utilidade de
todos seguirem o mesmo caminho?
Se
calhar é problema meu… defeito que tenho de ultrapassar. Mas sempre fui
treinado para assim ser e fui contrariado – com toda a justiça, acrescente-se! –
quando não o fazia e faço.
Em
casa, na minha família tudo se discute e põe em causa. As mais animadas
discussões sucedem-se, despoletadas pelos assuntos mais díspares. Mantenho
contendas violentas e prolongadas com alguns dos meus amigos mais próximos. O
que não quer dizer que a nossa amizade não seja inabalável. Aliás: é tão forte
que resiste às controvérsias mais eriçadas! Admiro no meu orientador a coragem
de manter uma opinião e sustentá-la
até ao fim. E de me estimular a fazer o mesmo.
Sejamos
francos: todos temos pontos de vista diversos, e ainda bem. Sobre tudo. Tanto
quanto a assuntos de interesse ínfimo quanto a matérias importantíssimas. Quer
relativamente a temas do foro íntimo como às grandes questões da atualidade.
Ora,
se assim é, o normal é que gostemos de expor as ditas visões, as formas
diversas de encarar o que nos rodeia. Não creio ser saudável o ser-se neutro,
frio, igual aos demais. Não me parece tentador limitar as opções entre “A” e “B”,
entre branco e preto. Encaro com reservas e mesmo temor a possibilidade de me
impedirem de dizer “C”.
E,
quando isso acontece,,, tenho vontade de gritar:
-
É C! Está-se mesmo a ver que é C! C é que
é a solução certa! Eu tenho a certeza! E há uma série de motivos para ser C – e
não A ou B – o caminho a ser escolhido, a tese que vinga. Eu explico-vos num
instante!...É básico, é elementar, é lógico!
E
assim se começa uma longa, intensa, produtiva e saudabilíssima discussão!
Uma
das grandes vantagens de me encontrar com amigos e colegas como os que revi
nestes últimos dias é essa mesma: poder discutir, discutir sempre, discutir
acaloradamente. Sem medos nem restrições. Cada um é como é, e ainda bem que
somos todos diferentes. Não é excelente ter o prazer de convencer e ser
convencido? Apresentar argumentos diferentes, ouvir justificações dissonantes?
Poder construir e desconstruir? Porque só assim se avança na investigação (acho
eu… é discutível...mas estou pronto a defender o meu ponto de vista!). E quem,
como nós, vive em boa medida dessa mesma investigação não se pode dar ao luxo
de ficar anquilosando à seca num rochedo neutral, seguindo as marés com um olhar
meio morto.
Posso
nunca vir a ser um historiador decente de acordo com os padrões defendidos pela
boa alma de que acima falo (mas estou disposto a discutir a questão, se ela estiver pelos ajustes) e é provável que quando me obriguem a optar entre “A” e “B”
diga (mesmo quando até ache que uma das ditas hipóteses é perfeitamente
viável):
C!
Só
para provocar uma discussãozinha saudável.
E
espero bem que continue assim vida fora. E que, aos 110 anos, rodeado de
família e dos indispensáveis confessores jesuítas, sentindo chegar o inevitável
momento em que lá terei de me ir reunir fisicamente no jazigo aos meus maiores,
lance um derradeiro olhar ao crucifixo indo-português e pergunte, antes de fechar
definitivamente os olhos e partir para um espaço onde seja sempre verão e haja
solares cheios de livros e sol à beira do mar:
-
Mas já??!!?? Porquê?? Não podemos discutir um pouco a questão?
E
rumarei até outras paragens decerto juntando e sistematizando argumentos para
sustentar o meu ponto de vista.