O exemplo dos bisavôs
Tenho,
como toda a gente, quatro bisavôs, dos quais – esta característica é que talvez
já não seja tão comum – dois deles morreram bem velhos (para os padrões da sua
geração, uma vez que ambos ultrapassaram os oitenta, sendo que o derradeiro sobrevivente
expirou depois de eu ter nascido) e os outros dois precocemente. Destes
últimos, um, o Avô A., lançou o derradeiro suspiro em 1932 e o outro, o Avô H.,
fê-lo em 1939. Contavam, respetivamente, 41 e 42 anos. E foi a propósito de uma
série de necessários procedimentos em torno do jazigo que alberga os restos do
Avô A. (para além de uma montanha de outros antepassados e parentes) que,
nestes dias em que a crise se avoluma, me lembrei deles. Um e outro têm em
comum o facto de, apesar de terem morrido há tanto tempo, ainda serem
ciclicamente recordados – e não me refiro somente a memórias esparsas invocadas
por familiares. Não obstante as décadas e décadas que já volveram sobre os anos
das suas mortes, até nós, os seus bisnetos, os encaramos ainda com alguma
familiaridade. É claro que o facto terem subsistido inúmeras fotos de um e de
outro ajuda, bem como estarem duas delas na sala de estar de casa dos meus
Pais, fitando-me (o meu lugar no sofá é mesmo à frente da mesa de jogo onde se
acham os ditos retratos) desde os dias longínquos em que foram tiradas. Todos
sabemos que o Avô H. é o rapaz moreno de ar um tanto enjoado/sobranceiro e cara
alongada sob o ridículo penteado em voga na época (um indescritível risco ao
meio, que lhe sulca o cabelo alisado com brilhantina) e o Avô A. o rapaz de
rosto largo, louro e de olhos azuis (e estrábico de um deles), cujo cabelo
encaracolado também não se coaduna bem com o mesmo estilo de penteado. A única
diferença é que o Avô A. não usa brilhantina (não sei se conseguiria, devido
aos seus caracóis). No entanto, creio bem que o risco ao meio, desenhado quase
a regra e esquadro, devia ser muito apreciado pelos jovens daquela época, a
atentar na quantidade de vezes com que deparamos com ele nos retratos dos bisavôs
de vários outros rapazes e raparigas da minha geração. Vivia-se a era do jazz (o Avô H. constituiu mesmo, com
alguns parentes e amigos, um pequeno conjunto musical significativamente
chamado jazz do grupo, com uma
bateria inacreditavelmente primitiva onde se vê, ainda em traços muito
rupestres, outro dos símbolos americanos que começava a conquistar o mundo: o
rato Mickey), e era normal que estes jovens beirões tentassem, dentro das suas
apertadas possibilidades, ostentar um ar que hoje associado à Nova Iorque de Scott
Fitzgerald.
As
semelhanças entre A. e H. acabam, certamente, aqui: no pertencerem à mesma
geração, terem vivido na região centro do país e, obviamente, serem meus
bisavós. A história de vida de cada um deles, pelo contrário, diverge e encerra
uma lição.
O
Avô H. nasceu em Seia, na pequena Seia, sendo o primeiro varão de uma antiga estirpe
beirã. A família foi – pode-se dizer, com algum exagero –, a meu ver, a sua
sorte e a sua desgraça. Por um lado, nas primeiras décadas de vida, conseguiu
transformá-lo numa personalidade interessante e com potencial. Foi muito
influenciado por duas figuras cheias de carisma, que se desvelaram em promover
o primogénito. Por um lado, temos o seu pai, um homem que merecia um estudo
cuidado ao nível regional. O velho Avô Artur, que ainda hoje nos olha com uma
simpática sobranceria através de uns bigodes impecavelmente revirados – e sempre
de perfil, pois a grande vaidade que o caracterizava não lhe permitia mostrar o
olho esquerdo, vazado por um misto de inconsciência infantil, descuido da ama e
uma barba cortante de milho quando era criança – escrevia muito bem,
dedicava-se aplicadamente à música (compunha, dirigia – ainda hoje possuímos
uma bonita e requintada batuta que lhe pertenceu – e tocava, dizem que com real
talento, violoncelo e piano) e vibrava intensamente com a política. Tudo isto envolto
num certo spleen elegante. Era
visceralmente republicano muito antes de haver república, e eu ainda não
percebi como é que um rapaz que pelo lado materno descendia de abastados industriais
de lanifícios (os quais, creio bem, não teriam grandes preocupações com o
proletariado nem desejavam instabilidades políticas que lhes pusessem em causa
o rumo dos negócios) e pelo paterno de uma família fortemente aferrada à
monarquia constitucional (o que teriam achado os solenes cónegos Cabrais, um
deles tesoureiro-mor da patriarcal, sempre tão ciosos da memória do
constantemente incensado marquês de Tomar, das tendências deste jovem sobrinho?)
resvalou, algures entre Manteigas e Seia, para tais opções políticas, à data
ainda escassamente difundidas por aquelas serranias. A paixão pela política
levou-o, naturalmente, à redação de editoriais inflamados, ao mundo dos
jornais, a uma devoção sem limites por Afonso Costa, a uma série de desgostos
com camaradas de luta e à presidência da câmara local. Mas não foi só ele a
influenciar o jovem H. Por outro lado, há que ter em conta a presença do tio e
padrinho do meu bisavô. O Tio Maximiano Maria (é um nome INACREDITÁVEL, eu sei;
mas na minha família há vários) foi igualmente um homem interessante. Jurista e
descendente de uma família que produziu tantos advogados, notários e juízes como
políticos, dedicou-se com fervor à genealogia, na mira de escrever um grande
livro consagrado às principais linhagens das localidades de onde provinha
(Celorico da Beira, sobretudo, mas também Vila Cortez e Vila Real de
Trás-os-Montes) e onde os seus pais se haviam fixado (o progenitor era um dos
notários locais), Seia. Grande parte da imensa obra perdeu-se, mas ainda
conservamos vários dos seus originais, reunidos em grandes maços e repletos de
informações pessoais que os tornam absolutamente impublicáveis. A passagem por
S. Bento deu-lhe oportunidade por vasculhar, durante uns anos, os fundos da
Torre do Tombo e permitiu-lhe alimentar o gosto pela história. Para mais, tinha
pretensões a filólogo, e enveredou por uma luta encarniçada em torno da grafia
correta da palavra Seia (ele
pretendia que fosse Ceia), da qual só
se considerou vencido após intervenção de Teófilo Braga. Mas nem isso o impediu
– afinal, ele era o presidente, à data – de determinar que qualquer
correspondência endereçada à Câmara de Seia
fosse aceite. À semelhança do cunhado, respirava política e politiquices
desde os bancos de Coimbra, primeiro como progressista
(era um dos principais rivais da família da futura mulher do seu sobrinho e
afilhado, o que gerou algum atrito) e, depois, como republicano. No entanto, as
preocupações republicanas não o impediram de encarar a vida através de um
filtro de riqueza que se mostrava bastante desadequado à realidade da maioria
dos seus conterrâneos: numa altura em que a água da região não se podia beber,
por inquinada, foi substituída, em sua casa, por champanhe. Com exemplos
destes, não havia, efetivamente, fortuna que pudesse resistir, por mais sólida
que fosse…
O
jovem H. foi influenciado muito especialmente por estes dois homens. Assim,
desenvolveu a sua apetência para a escrita, para a música (destacando-se, no
seu meio, em ambos os campos), ao que associou a paixão pela fotografia, área
na qual ganhou diversos concursos para amadores. Vaidoso por natureza,
tornou-se bastante diletante – mais do que, provavelmente, seria desejável. Assinava
muitos dos seus trabalhos (não sobrou praticamente nenhum, sendo que o meu Pai
conserva cuidadosamente umas quadras recortadas de um jornal) com o pseudónimo Larbac (Cabral ao contrário, evidentemente),
que até hoje – e espero que o mesmo suceda nas gerações seguintes – nós, os
seus descendentes, usamos.
Ora,
se a família e o meio se revelaram, para H., uma bênção, no sentido de lhe ter
proporcionado meios para desenvolver as suas aptidões naturais, também se mostraram,
mais tarde, a prisão da qual não conseguiu escapar. A morte súbita do
progenitor, quando era ainda bastante novo, a situação apertada em que ficaram
a mãe e uma série de irmãos mais novos, a necessidade repentina de ganhar a
vida – e a subsequente entrada na burocracia local, com um emprego confortável
mas pouco estimulante na Câmara, atribuído certamente em virtude de ser filho e
sobrinho de presidentes do município – a derrocada da primeira república em que
acreditava, o ambeinte pouco estimulante da estagnada Seia e, acima de tudo, o
sonoro ruir de várias das elites beirãs nos princípios do século passado
ditaram a sua sorte. É verdade que escreveu bastante, tocou muito e teve tempo
para tirar belas fotografias, isto para além de ter conseguido reunir uma
pequena mas interessante livraria pessoal, hoje incorporada na biblioteca
municipal local… mas tal ter-lhe-á sido suficiente? Não terá jamais sentido,
nas pouco mais de quatro décadas que viveu, que poderia ter ido mais além,
desenvolvido os vários talentos que lhe foram dispensados, ter deixado um maior
legado? É verdade que nunca o conheci, mas admito a hipótese de uma resposta
positiva. Quando morreu – e foi o último a morrer no velho casarão dos Mello
Motta-Veiga, prenunciando o fim de uma época que não tardou – o espólio que
deixou perdeu-se na quase totalidade. Do menino talentoso acalentado pelos
parentes subsistiram alguns artigos e daguerreótipos inspirados, retratos de
expressão solene e a memória das filhas e de alguns dos seus contemporâneos.
Mas isso é, afinal, muito pouco, muito menos do que poderia ter sido. Há meia
dúzia de anos, um desses escrevinhadores de província, num jornal local, ao
tentar recriar épocas passadas, aludiu ao seu nome quando relatava uns
disparatados episódios locais. O Avô H. talvez o tivesse mirado dividido entre um
misto da snobeira que vários lhe
apontavam e de um certo desprazer em que a sua memória fosse associada, por aquela
pobre alma, a tão insignificantes e ridículas historietas.
O
Avô A. teve um percurso de vida bem diverso. Acho que a principal diferença que
o apartou do Avô H. foi ter tido a coragem – ou a necessidade, quem sabe? – e a
oportunidade de recusar muito do que se esperava dele e, consequentemente,
esforçar-se (não raro com grande sucesso) por provar que tinha razão nas opções
que fizera. Filho varão mais novo do riquíssimo industrial e capitalista
Mathias Pedroso de Lima, foi destinado pelo progenitor, que o queria juiz, para
cursar direito. Recusou, e acabados os estudos secundários, veio trabalhar para
as firmas familiares. Claro que teve de se esforçar mais do que todos os demais
para demonstrar ao pai a justeza da sua escolha – ao que não foi alheio,
certamente, o facto de, segundo muitos ainda contam, ter um talento notável
para a vida empresarial. Já antes afrontara o severo Mathias, que proibia os
filhos de saírem à noite para se divertirem um bocado, pois achava que eles
deviam passar os dias a trabalhar e as noites a repousar. O Avô A., à socapa,
de viola debaixo do braço, saltava da janela do seu quarto (felizmente a casa
da Risca-Silva é baixa!). O esquema foi, contudo, descoberto: uma bela noite,
quando estava a fazer o nó da gravata à frente do espelho do guarda-fato, viu
refletidos, semi-escondidos atrás de uma porta, os dois irmãos mais velhos e um
criado a espiar. Quando o velho capitalista faleceu, viu-se co-herdeiro de uma
importante fortuna, mas cedo percebeu que os irmãos jamais levariam a sério as
opiniões do “miúdo”, por muito bem
que os três se dessem. Assim, mantendo sempre a posição nas empresas
familiares, decidiu começar o seu “império” paralelo. Ergueu-o com sacrifício,
mas os esforços foram coroados de sucesso. A Mathias de Nelas e Coimbra dos anos 20 e 30 foi um grande
conglomerado de empresas que marcou a região centro. Respeitado no mundo dos
negócios, acabou por novamente ir contra as diretrizes do falecido progenitor:
seduzido pela política, favorável aos ventos que sopravam desde 1926,
administrou o concelho de Poiares, foi vereador da Câmara de Coimbra e, à data da morte, equacionava tentar conquistar a presidência do município. Ao contrário de H., não
deixou escritos (a não ser comerciais), nem fotos, nem música – eram, na
verdade, pessoas muito diferentes. Mas que sorte a nossa ter sido tão cuidadoso
em matérias de extremas (de que problemas esse seu cuidado livrou a descendência!)
e ter sabido adquirir algumas interessantes peças antigas! Curiosamente, o Avô
A., tão burguesão na sua forma de
encarar o mundo, casou com uma senhora que, na sua juventude, muito
provavelmente conhecera o jovem H., uma vez que se moviam nos mesmos círculos e
na mesma região.
Como
relacionar estes dois bisavôs com os tempos de crise que hoje vivemos? É
simples: ambos habitaram num Portugal varrido pela instabilidade económica,
política e social, muito dominado pela influência de potências estrangeiras (afinal,
algo não muito diferente do que se passa hoje, não é verdade?) e, ao longo das
suas breves existências, representaram duas formas de agir perante os momentos
menos bons com que todos nos defrontamos: o Avô H. não terá, certamente, sabido
nem podido pôr a render todos os talentos que, em potência, tinha; o Avô A.
soube reunir forças e coragem para, contra ventos e marés, enfrentar o futuro
que lhe era proposto. Da mescla dos exemplos de vida de cada um deles – e, não nos
iludamos, qualquer um teve os seus dias luminosos e os seus momentos de
embaraçosa escuridão, à semelhança de todos nós – é possível (pelo menos para
nós, os bisnetos) retirar uma lição: talentos todos os temos, e todos tivemos a
sorte de os podermos cultivar. O difícil é, mesmo quando tudo se parece
desmoronar, continuar a tentar multiplica-los. É um esforço exigente, não o
nego, mas que traz compensações e promessas de um futuro mais risonho.
Não
se passará o mesmo, ainda que de uma forma proporcionalmente muito diferente,
com o Portugal dos nossos dias? Os talentos estão aí, e merecem não só ser
estimulados como postos em ação para impormos o nosso ponto de vista, a nossa
maneira de ver o mundo, sem peias nem temores. Para deixarmos a nossa marca, e
não uma saudade do que poderíamos ter feito…