Net
[10/2, c.18.30h]
- Boa tarde.
- Boa tarde,
fala o Luís Cabral de Oliveira, de Coimbra. Estou com um problema no acesso à net que me parece ser grave. A ligação à
rede vai abaixo recorrentemente.
- Boa tarde,
antes de mais posso perguntar se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Sim, mas
chame-me só Luís Oliveira, sem senhor.
- Ok, sr. Luís
Oliveira. Sr. Luís Oliveira, o que se passa então?
- Como lhe
disse, não consigo manter uma boa ligação à net.
E ontem à noite a televisão também me pareceu estar a falhar. Será um problema
do router?
- Sr. Luís
Oliveira, talvez. Indique-me o número associado à conta. Ah, ok, já está,
obrigado.
- Agradecia que
me resolvesse o problema com a brevidade possível, estar sem ligação faz-me
imensa falta…
- Sr. Luís
Oliveira, concede-me um instante para eu analisar a ligação?
- Claro, com
certeza.
- Muito
obrigado.
[Passa menos de
um minuto]
- Pronto, já
está.
- Já? Que
rápido! Obrigado!
- De nada, sr.
Luís Oliveira.
- O que era?
- Um problema
técnico, sr. Luís Oliveira.
- Pois, calculo
que sim… mas que tipo de problema?
- Técnico, sr.
Luís Oliveira.
- Mas não me
pode explicar, para eu tentar perceber?
- Era um problema
técnico, sr. Luís Oliveira.
- Pronto, está
bem. Queira Deus que esteja tudo resolvido.
- Posso ajudá-lo
em mais alguma coisa, sr. Luís Oliveira?
- Não, obrigado, estou aliviado por tudo se
ter resolvido tão eficazmente.
- Bom resto de fim
de semana, sr. Luís Oliveira.
[10/2, c.19h]
- Boa tarde.
- É novamente o
Luís Cabral de Oliveira. Estive há meia dúzia de minutos a falar com um colega
seu por causa de grandes dificuldades que tenho desde ontem no acesso à net em
minha casa. Nem no skype consigo
manter uma conversa.
- Boa tarde uma
vez mais, antes de tudo posso perguntar-lhe se o posso tratar por sr. Luís
Oliveira?
- Sim, mas
chame-me só Luís Oliveira.
- Certamente sr.
Luís Oliveira. Dá-me um instante para verificar a sua situação?
- Faça favor. E
agradece-lho que veja com cuidado. Um colega seu tentou resolver mas ficou tudo
na mesma!
- Obrigado por
ter esperado, sr. Luís Oliveira. Constatei agora que há duas questões…
- Ai sim?
- Pois… por um
lado, o senhor mora numa zona muito densamente povoada.
- É normal, moro
numa cidade, não numa quinta na serra da Estrela.
- Isso é um
problema.
- Está a
dizer-me que se morasse numa quinta perdida na Beira a minha ligação era
melhor? Ambos sabemos que isso não é verdade.
- Pois…
- Além disso,
como é que até há um par de dias a ligação era excelente e, depois de um breve período
de agonia, agora está péssima. Não tem lógica nenhuma.
- Pois…
- Bom, e o
segundo problema?
- Ah, esse é
técnico.
- Será o mesmo
de que o seu colega me falou?
- Não sei, não ouvi
a conversa. Que problema era?
- Ele não me
disse, apenas repetia que era técnico. Que problema é que o senhor identificou
agora?
- Também
técnico.
- Mas como quer
que eu perceba o que se passa se todos apenas me dizem que os problemas são “técnicos”?
Não há milhares de tipos diferentes de problemas técnicos?
- Claro que há.
- Ah, bem me
parecia: é que eu não sei nada do assunto. Então, de todos esses problemas
técnicos possíveis, qual era o meu?
- Era técnico.
[Indignação
sustida]
- Ok, mas agora
vai tudo começar a funcionar bem?
- Sim.
- Não quer saber
o que me aparecia no ecrã? Vou ler-lhe [leio].
- Ok, é isso
mesmo: um problema técnico. E o sr. Luís Oliveira deve estar a usar um canal
muito cheio. Eu agora vou instalar um dispositivo para o router procurar o canal disponível menos congestionado.
- Ah, isso
parece-me bem. Oxalá funcione!
- Sr. Luís
Oliveira, tem um replicador [isto dito com uma cerrada pronúncia do norte].
- Peço imensa
desculpa, não sei o é. Ou melhor, não percebi o que disse.
- Um
replicador!!!
- Oh, não, a
minha casa é um pequeno T2.
- Estou a ver
que tem imensos equipamentos ligados.
- A sério? Como é
possível? Devia ser apenas o meu pc, o telemóvel e a impressora.
- Isso.
- Ora, e está a
dizer-me que são imensos equipamentos?
- Pois, na
verdade, eu costumo ter mais em minha casa. E não tenho problemas.
- Então não
percebo o seu raciocínio.
- Poissssssss…
Pronto, já está bom. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa, sr. Luís Oliveira?
- Não, muito obrigado.
- Bom resto de fim
de semana, sr. Luís Oliveira.
[10/2, c.19.40h]
- Boa noite.
- Fala o Luís
Cabral de Oliveira. Pela terceira vez esta noite, depois de dois colegas seus alegadamente
terem resolvido um caso sério de dificuldade de conexão à net. Sem nenhum sucesso, em qualquer das vezes. E eu preciso mesmo
que isto se resolva. Não é melhor mandar vir cá um piquete? Aparece-me um aviso
alertando para a necessidade de verificar o router
e o modem.
- Boa noite,
antes de mais posso perguntar-lhe se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Sim, mas
chame-me só Luís Oliveira, sem senhor. Não percebo a vossa fixação nas formas
de tratamento dos clientes. Não me parece ser o mais importante quando alguém
vos liga.
- Certamente sr.
Luís Oliveira. Estou a confirmar e o sr. Luís Oliveira já telefonou duas vezes
há pouquíssimo tempo.
- Acredite que não
o teria feito caso não precisasse.
- sr. Luís
Oliveira, está perto do router?
- Estou na
divisão contígua.
- Algum dos meus
colegas já lhe pediu para levar o computador para a divisão onde se encontra o router?
- Não.
- Isso é
estranho…
- Pois, olhe, eu
não sei se é ou não… não percebo nada disto e só gostava de ver o problema
resolvido de forma eficaz.
- Certamente, sr.
Luís Oliveira. Leve-o para essa divisão.
- Ok, já cá
estou.
- Já
identifiquei o problema.
- Ah, excelente.
E que tipo de problema era?
- Tratava-se de
um problema técnico, sr. Luís Oliveira.
- Por amor de
Deus, não se pode limitar a dizer-me isso!
- Mas era o que
era, sr. Luís Oliveira: um problema técnico.
- Não duvido
disso, o especialista é o senhor. Mas ficaria muito satisfeito se me explicasse
o tipo do problema técnico em
questão. Só para eu perceber.
- Bom, era um
problema técnico relacionado com o engarrafamento de utilizadores. Há treze
canais disponíveis e eu agora redirecionei-o para um que passa a ser
exclusivamente utilizado pelo senhor, sr. Luís Oliveira.
- Ótimo,
obrigado! E vou voltar a ter uma boa conexão?
- Certamente, sr.
Luís Oliveira.
- É porque estou
agora a experimentar e está tudo na mesma.
- Poiiiiiiiiis,
vai demorar uns instantes, sr. Luís Oliveira.
- Dez minutos?
- Uns instantes.
- Repare, eu
aplaudo a sua prudência. Mas dê-me só uma ideia, ainda que vaga, do tempo que o
sistema precisará para recuperar. Até lhe digo que nem conto usar o computador
mais hoje.
- Bom, sr. Luís Oliveira, amanhã de manhã cedo
já estará tudo operacional.
- Que boas
notícias! Não acha portanto mandar vir um técnico?
- Não será
necessário, sr. Luís Oliveira.
- Sabe, é que eu,
apesar de ser do mais ignorante nestas matérias, acho estranho: houve como que
uma rápida degradação do sinal. Não será indício de que o router está a falhar e a chegar ao fim de carreira?
- Não, sr. Luís
Oliveira. Tudo está bem agora.
- Então muito
boa noite.
[11/2, de manhã cedo]
- Bom dia.
- Olá, é o Luís
Cabral de Oliveira. Estou cansado de telefonar para os vossos serviços de
assistência. Apesar de três colegas seus terem assegurado uma resolução eficaz,
ainda não consigo ter uma boa ligação à net.
Tudo persiste na mesma!
- Bom dia, antes
de mais pergunto se o posso tratar por sr. Luís Oliveira?
- Trate-me como
quiser. Isso não me interessa nada! Eu quero é ver este impasse ultrapassado.
Acha que pode ser uma falha no router?
Eu preciso mesmo de uma boa ligação à net.
- Pode
conceder-me só uns instantes para verificar a situação, sr. Luís Oliveira?
- Sim,
naturalmente.
- Sr. Luís
Oliveira, vou mandar uma equipa para lhe trocar o router com a maior brevidade possível.
- Excelente!
Talvez assim tudo normalize.
- Tem de ser, sr.
Luís Oliveira. O senhor tem um sinal de 15%. Absolutamente inútil. Os meus
colegas não lhe disseram isso?
- Nada: apenas
identificaram vários problemas técnicos, que não explicaram, e asseguraram
ressurreições miraculosas da minha ligação.
- Hummm, entendo…
Mas isso já não interessa. O técnico estará aí em casa entre as 11 e o meio dia
e meia. O que lhe parece?
- Ótimo!
E não é que o
técnico chegou ainda antes disso, depois de duas sms a avisar, tratou de tudo com um profissionalismo invejável e
deixou-me com um router novo e uma
impressão impecável do serviço prestado, complementados com um elogio à vista
da sala: “poucos têm uma assim!”.
Deste modo,
confesso que ainda não consegui chegar a uma conclusão. Tratar-se-á de estratégia
comercial elaborada e genial em que, após nos levarem quase ao desespero,
presenteiam o cliente persistente com um serviço excelente? Ou tão apenas a
confirmação do velho adágio “Deus ajuda a quem madruga”? Maquiavelismo
corporativo ou transcendente ajuda celeste? Temas para refletir em domingos frios,
cinzentos e chuvosos – como hoje.