Sunday, February 03, 2013

O EMPALIDECER DE REFERÊNCIAS


Desenganem-se, desde já, os que julgam que, na próxima meia dúzia de linhas, se falará do – já bastante estafado, convenhamos – tema da “queda dos mitos”, ou dos “ídolos com pés de barro” e coisas desse jaez. Na verdade, as referências a que me pretendo referir são, pura e simplesmente, aqueles lugares e pessoas que esperamos estarem sempre , quando por lá passamos. Eu sei, desde há muitos anos, que o mundo não se pode manter nem inalterável, nem fiel ao que desejamos que ele seja (ou como ele se conserve) – na verdade, por estranho que possa parecer, aprendi isto num livro de Agatha Christie, no qual (assumo, penitente, já não me lembrar muito bem dos pormenores do enredo) miss Marple torna, largas décadas volvidas (60 anos, ou qualquer coisa assim) a um hotel que estava exatamente igual ao que ela se lembrava dos tempos da sua adolescência, tendo começado logo a desconfiar do ambiente que a rodeava, por não ser normal (ainda que lhe fosse extremamente agradável) tal cristalização! –; no entanto, a perda de algumas referências acarreta sempre um ligeiro travo amargo.
Estive em Lisboa nos princípios da semana. Como todos sabem, gosto imenso da cidade – o que se deve a uma multiplicidade de razões, desde o facto de a “minha” FDUNL lá estar à Sociedade de Geografia, passando por família, amigos, AHU, Pio, etc, etc, etc –, onde vivi alguns anos (que espero não terem sido os últimos) e onde, normalmente por motivos académicos e profissionais, me desloco com a regularidade possível (que é sempre menor do que a desejada, já se sabe). Ora, quando estou pelas margens do Tejo – na verdade, os meus percursos lisboetas são assaz concentrados numa área relativamente pequena que se pode balizar pelo Terreiro do Paço (para mim, autêntico fim da linha) e pela cidade universitária (para além dela, mais concretamente, para além das traseiras da faculdade de Letras e da Torre do Tombo, as minhas incursões são raríssimas), S. Vicente de Fora e Junqueira (porque o AHU lá está!), e quase invariavelmente feitos em torno de uma série de “eixos estruturantes” como a Nova, a SGL, Entrecampos e Alvalade (avenidas da Igreja e de Roma, que, a meu ver, certamente por força de hábito de já largos anos, são mesmo o melhor lugar para se morar na capital), o Saldanha (eu sou jurista, enfim, como não gostar do Saldanha, onde encontro mais colegas por metro quadrado do que em qualquer outro pedaço do território nacional?), a BNL & Cidade Universitária, o Rato e o Chiado – e, certamente em virtude da minha maneira de ser bastante dada a rotinas (quando se é investigador, esta é, aliás, uma forma de proceder aconselhada, pois fortalece a capacidade de concentração e necessidade de perseverança que nos é exigida), há uma longa série de espaços que gosto de frequentar, de lugares que aprecio ir visitar e de gente com quem vou mantendo contacto. Aqui cabe uma pluralidade enorme de situações, que estão longe de ser todas de índole profissional. É óbvio que gosto de ir à faculdade, à Torre, à BN, ao AHU e à SGL, mas também me sabe particularmente bem percorrer a avenida de Roma e suas cercanias (nem que seja para me escandalizar com as rendas que pedem pelos apartamentos, na certeza de que a maioria delas arrombaria definitivamente a minha carteira e que tenho de me esforçar para a robustecer!), fazer as minhas habituais rondas aos antiquários de S. Bento e S. José, às papelarias, às livrarias e aos alfarrabistas da praxe (alguns fecharam entretanto, o que custa sempre um pouco, uma vez que os proprietários, em virtude de tantas horas a conversar sobre livros e papéis velhos, acabam por se tornar mais do que meros conhecidos; outros, como a para mim recorrente Bizantina, mantêm-se repletos de livralhada interessante, face à qual tenho de me conter furiosamente para comprar “apenas um” volume, esforçando-me por me conservar fiel ao propósito assumido quando nos começaram a estrangular financeiramente, “só quatro livros por mês, um por semana”, e manter à tona deste oceano de falências e pobreza mais ou menos disfarçada que nos teima em rodear a quase todos), ir tomar café aos lugares do costume, espreitar as montras preferidas, gastar uns minutos em conversa com velhos conhecidos e tomar consciência do que de novo vai surgindo por aí. E também, claro está, de ir almoçar (uma vez que, por princípio, janto em casa) de vez em quando a determinados lugares. A minha dinâmica de almoços lisboetas obedece a regras muito particulares: pura e simplesmente, eu sou demasiado pobre (ou demasiado somítico, ou demasiado gastador em outros géneros que não os alimentares) para almoçar todos os dias fora. Assim, seguindo, desde há muito, um conselho da minha Mãe, opto por, em boa parte das vezes, levar uma sandocha de casa e, depois de a comer, ir tomar um café a um lugar giro. Isto tem inúmeras vantagens: é bom para o orçamento, não se deixa de frequentar ambientes de que se gosta (nem que seja para uma bica, que sabe sempre bem) e evitam-se os lugares chungosos de comes, as pseudo-tascas e restaurantes de 5ª que cheiram imenso a comida, que é coisa que detesto (há algo pior do que andar a cheirar a fritos durante o resto da tarde? Blergh! Eu acho que não!)! Isto nos “dias sandes”. Nos “dias não-sandes”, também há uma série de hipóteses pré-definidas. Uma delas é a minha estremecida SGL – e é lá que vou geralmente quando não almoço sozinho e tenho algum tempo para a refeição. O ambiente é verdadeiramente familiar, as senhoras super-simpáticas, e a cozinha simples mas ótima. Outra (em tempos de maior contenção ;) ) é a cantina da TT – a qual não é extraordinária, mas sofrível. Por outro lado, quando estou pela BN, o refeitório local não me parece nada mau. E se nas cercanias há um H3burguer e estou sem vontade de optar por nenhuma das outras alternativas, essa é uma solução fácil e rápida. Falta, no entanto, aludir a uma outra opção, que, durante anos, foi recorrente nas minhas deambulações pela capital, e que mereceu, inclusive, já há que tempos, elogios rasgados nestes mesmos Prazos. Falo do Tachos & Tapas da Rua da Atalaia, local que muito frequentei e que primava por uma série de virtudes: boa cozinha, preços convidativos, extrema limpeza (o que, para mim, implica ausência de cheiros de cozinha – eu sei que sou aborrecido neste aspeto, e que é difícil para um restaurante pequenino evitar os odores provindos das respetivas cozinhas em constante atividade, mas o que é que querem, não consigo evitar!), frequência agradável e atendimento simpático. Pois bem, passei por lá – depois de largos meses de interrupção (meses esses em que as sandochas imperaram! ;) ) – e, que balde de água fria!, achei todo o espaço envolto num espesso crepe de decadência. Não que a proprietária (mas só lá estava uma, quando, dos vários irmãos comproprietários, havia regularmente pelo menos dois, e sem mãos a medir para os muitos clientes que faziam fila) não continuasse simpática, embora me tenha parecido francamente tristonha e abatida… mas a frequência não era a mesma, tudo tinha um ar menos arranjado… e pairava um (talvez não muito intenso, mas já excessivo para mim) odor a cozinha. Fiquei, como é fácil de calcular, simultaneamente entristecido e aborrecido: penalizado pela sorte madrasta daquele espaço que eu estimava e que constava da minha carteira de “referências” lisboetas (cheio de gente com bom aspeto, todos cumulados de atenções pelos manos comproprietários), aborrecido por me sentir defraudado (esquecera-me, portanto, da lição de miss Marple).


Tenho fama (não sei se justificadamente…) de ser pessoa um tanto inflexível, pouco dada a segundas oportunidades. No entanto, ninguém gosta de ver empalidecer as suas referências sem nada fazer para inverter o processo: daqui a umas semanas, num dia de sol risonho (para, caso haja um segundo choque, o bom tempo de alguma forma o amenizar), conto tornar ao Tachos & Tapas. A referência empalideceu, e muito… veremos se, numa próxima ida, recobra um pouco das suas outrora boas cores, ou se, simplesmente, como tantas coisas agradáveis da vida, em certo dia acabou.
Nessa altura, e caso tal suceda, ver-me-ei certamente forçado a citar uma frase muito da predileção do meu Pai – Olhem, terminou… e tal dia faz um ano! – e começarei a procurar um sucessor.

1 Comments:

At 10:36 AM, Anonymous Joana said...

mas espero que tenha sido só um dia mau...que o restaurante era realmente giro & simpático!

 

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