LEMBRAS-TE DE MIM?
Ontem fui, como costumo
fazer todos os sábados, comprar o “Nouvel Observateur” depois do jantar –
uma prática que irrita um pouco o meu progenitor, que considera aquele
periódico um indesejável agente do PS francês em sua casa (nem o alegar que é a
revista de atualidade política francesa mais barata o demove, pois
contra-argumenta logo que, se necessário, fornece a verba necessária para se
passar a adquirir um seu congénere menos extremado), e que olha de soslaio
sempre que o estamos a ler ou citamos os artigos que por lá vamos encontrando
(e como todos nós passamos parte dos nossos períodos em comum a perguntar “já
leu isto?”, “concorda com aquilo?”, “viu aquela burrice publicada em X?”, é
inevitável que as matérias do “Courier” venham, de vez em quando, à baila),
apesar de eu desconfiar seriamente que passa sempre os olhos, discretamente,
pelas suas páginas.
Pois bem, tornava eu ao
domicílio já de “Nouvel Obs” enrolado debaixo do braço, percorrendo os escassos
metros que separam a nossa casa do Dolce Vita, quando, na rotunda, sob o olhar
das palmeiras que por lá abundam, e apesar de ir de auscultadores, ouço um
- Lembras-te de mim?
E aparece-me, sem eu
estar à espera, uma figura franzina e sem cor (ou talvez cor de rato, o que vai
dar basicamente ao mesmo), de pele baça e dentes pouco saudáveis, onde eu
reconheci uma cara outrora bastante mais sadia e que, há muito, vinha sendo
consumida de forma avassaladora por práticas de consumo digamos que… menos
recomendáveis.
- Lembras-te de mim? (repetiu)
- Hummm… não sei…
(menti eu, que me recordava perfeitamente do meu inesperado interlocutor,
apesar do seu semblante cadavérico e pose suplicante; era um dos habitués do horrível “Samambaia”, um dos
da camarilha de rapazes e raparigas da minha geração que preferiram – desculpem
lá se soa a falso moralismo, mas é o que é – gastar a vida entre mandrianço e
drogas, em vez de enfrentarem outros desafios, talvez mais difíceis, mas
certamente não tão evidentemente destrutivos).
- Lembras-te sim –
teimava ele (cheio de razão, aliás. Porque razão não me havia eu de lembrar
dele? Coimbra não é assim tão grande, e eu vejo-o há anos e anos várias vezes
por mês) – Eu sou do bairro.
E, para evitar
quaisquer outras hesitações da minha parte, como que buscando um argumento a
favor do facto de que até os meus pais conhecia, continuava:
- O teu pai trabalhava
na DREC, e a tua mãe é uma senhora de cabelo branco (enfim, esta parte era uma
bela treta: jamais o meu Pai trabalhou em tal sítio, e a minha Mãe, que aliás é
loura, ficaria certamente irritada por ser definida como “senhora de cabelo
branco”, mesmo sendo por quem era).
Já farto daquela
tentativa de reconhecimento (e farto de saber que ele tinha pleníssima noção de
que eu sabia perfeitamente de quem se tratava), achei por bem atalhar:
- Ah… sim. Já estou a
ver... (Aqui embatuquei, o que é raro em mim, que sou uma gralha faladora. O
meu dilema era: não lhe vou perguntar “Tudo bem?”, pois, pelo aspeto dele – e
por ele estar a falar comigo, coisa que NUNCA tinha feito e eu estava convicto
de que JAMAIS faria – isso soaria a terrível ironia; mas também não lhe queria
dizer nada que, de qualquer modo, o levasse a pensar que desejava manter aquele
diálogo desconfortável e inusitado. Para mais, estava de ressaca de enxaqueca,
pelo que de “faro” apuradíssimo, e o rapaz não cheirava propriamente a rosas…).
- Ainda bem (disse-me
ele). Desculpa estar a chatear-te (Não desculpo NADA, pensei eu! Odiar-te-ei
até me lembrar deste episódio!), mas preciso mesmo da tua ajuda.
(Ainda me passou pela
cabeça responder: “Azar! Não tenho erva comigo” – mas isso seria não só uma
cretinice, como uma provocação estúpida, cruel e inútil, e, novamente, um
possível incitamento ao diálogo; isto para além de ser muito improvável que
alguém, mesmo que desesperado por uns tostões para uma dose, achasse que eu
tinha qualquer coisa do género nas algibeiras).
- Ah… (foi o máximo que
consegui responder)
- Sim, sim… tens de me
ajudar.
E, rebolando uns olhos cheios
de desespero, daquele desespero que nos leva, em plena Solum, no
quartel-general blindado do tipo que conhecemos de vista mas com quem jamais
trocámos uma palavra, e que sabemos que não vai com a nossa cara e com o nosso
modo de vida, a interpelar esse mesmo tipo e a cravar-lhe uns trocos,
continuou, atabalhoado e frouxo:
- Tens alguns cêntimos
que me emprestes…?
Eu, já a sentir-me
indignado e a ver a minha magra bolsa aliviada em prol de um palerma que
suspirava por mais uma dose, ainda tentei replicar:
- Sabes, não tenho
nada. Fui comprar a revista (e esgrimia o “Nouvel Obs”, na esperança, que já
calculava vã, de assim o demover) e gastei o que tinha.
- Não preciso de muito
– persistia ele. Uns cêntimos, 50… olha, 70 cêntimos.., para ir comprar
papo-secos ao “Dolce Vita”. Tenho mesmo de ir comprar papo-secos, e só há
papo-secos no Dolce-Vita. Não, não é isso… há papo-secos em todo o lado, mas no
Dolce Vita ainda há agora… Bom, quero dizer que só Dolce Vita é que está aberto. E eu tenho de
ir lá, tenho de ir lá depressa, senão fecha, e não posso ficar sem os
papo-secos!...
Bom… não vou cair na
tentação de explorar a analogia “papo-seco”/dose. Na verdade, fiquei logo
cansado daquele arrazoado desconexo e desesperado. Apetecia-me fechar os olhos
e esperar que, ao reabri-los, aquele tipo a desfazer-se desaparecesse da minha amada Solum, da minha
vida, e me deixasse espreitar para o “Nouvel Obs” a ouvir o que estava a ouvir e a
pensar nos meus brâmanes católicos e suas tropelias jurídicas.
O que fazer?
Se recusasse os 70
cêntimos, ele iria atazanar-me até me conseguir arrancar o que quer que fosse,
nem que se tratasse de uma mísera moeda de 20. E eu teria de suportar um pouco
mais o seu cheiro, a sua presença incómoda e a sua decadência. Não queria aquilo,
nem ali, nem mais um segundo.
Se, por outro lado,
lhos desse, o que me garantia que ele não me passava a tentar cravar dinheiro
noutras alturas? E o meu sangue Mathias borbulhava já na iminência de me
desfazer, a contragosto, de dinheiro que não me iria trazer nenhuma mais-valia
ou felicidade.
Cedi ao imediatismo, e,
apesar de me custar horrores despedir-me da minha moeda (uma daquelas que, por
mais que trabalhe, cada vez são mais escassas na minha carteira), lá lhe dei um
euro. E quando lhe ia dizer:
- Mas olha que é tudo o
que tenho, não adianta vir pedir mais
já ele se tinha posto a
andar, tão depressa como aparecera.
Vi-me, é certo, livre
daquela presença incómoda. Mas fiquei com a noite estragada. Não era tanto o
euro (bom, TAMBÉM era o euro, mas não só), mas sim o desconforto que ficava no seu
lugar, a pesar-me não na carteira, mas na cabeça. Pactuara com o que não concordava,
tivera de aturar aquele encontro deprimente e, ainda por cima, perdera
dinheiro. E senti-me como se, vindo de entre as palmeiras, um duende disforme e
dissonante aparecesse e, apontando para mim, naquela situação igualmente disforme
e dissonante, me gritasse, fazendo um esgar boçal:
- OTÁRIO!
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