SOLIDÃO ACOMPANHADA
Presenciei
hoje, na missa – missa mais solene (pelo que mais concorrida) do que o
habitual, com direito a bispo e tudo – uma cena que me perturbou. Á minha
frente sentou-se uma notabilíssima académica, já muito idosa, que me pareceu, em
comparação com a última vez que a tinha visto, inacreditavelmente mais frágil e
dobrada sobre si no seu fato de tweed. As senhoras do banco – que não faziam a
mais pequena ideia de quem ali estava – encolheram-se, com a maior das
simpatias, para a idosa catedrática se sentar, a custo. Durante a celebração,
creio que terá caído duas vezes numa dormência (típica das pessoas muito
idosas, já se sabe) e quase tombou, no que podia ser uma queda perigosa porque
desastrada. A vizinha do lado, inexcedível, passou-lhe o braço pelas costas e
amparou-a. Quando da comunhão, levaram-na pelo braço e, ao sentarem-se,
davam-lhe festinhas como a uma velhota da aldeia. A celebérrima classicista –
que, para aquelas almas simples mas bem-intencionadas – era apenas uma velhota
mais a precisar de ajuda, tem sobrinhos e sobrinhas (certamente atentos) e uma
corte de admiradores e estava, naquela missa, rodeada por densa massa humana.
Era, inclusive, alvo de desvelada atenção por parte dos seus “companheiros de
banco”. No entanto, parecia isolada como uma ilha, náufraga numa imensa solidão acompanhada. Duvido muito que
aquela mulher em tantos aspetos pioneira entre nós tenha realmente apreciado os
beijos repenicados, as festas com um ar condescendente face à “pobre velhinha
desvalida”, os olhares de rural preocupação e curiosidade. Mesmo que tenha
apreciado os desvelos que os mesmos traduziam. No entanto, um corpo envelhecido
pode ser uma prisão cruel para uma mente ainda ágil, para uma inteligência
aguda e crítica.
Ora,
todos nós nos sentimos, por vezes (espero sinceramente que POUCAS vezes!),
assim – sós num mar de gente, que está presente e nos rodeia fisicamente, mas
não nos acolhe, ou não nos. Ou, talvez pior, que nos recebe exatamente como nós
não desejaríamos ser recebidos. Eu próprio não constituo exceção a esta regra
e, assim de rajada, consigo imediatamente lembrar-me de meia dúzia de situações
do género – mesmo que (como felizmente aconteceu na maioria delas), o cenário
se tenha rapidamente revertido a meu contento. Por exemplo, a primeira vez que
entrei na sala de jantar do Pio – do meu estremecido Pio, que tanto elogio e de
que tantas e tantas recordações excelentes conservo – senti um frio na espinha por
ser “o novo”, e ao ser olhado como “o novo”. Uma sensação que muitos de nós,
que viveram situações parecidas, conhecem: como
é que se faz? Onde é a fila? Onde estão os tabuleiros? Onde me vou sentar? Quem
parece mais simpático (ou com um ar menos hostil?). É claro que, da vez
seguinte (um dia depois), tudo se passou sem dramas.
Ou
quando saí pela primeira vez sozinho à rua, na aldeia de Britona, em Goa.
Durante o quilómetro e meio de tinha de calcorrear até chegar ao ferry, eu era o ÚNICO branco (abençoada
sensação, na altura estranha de assimilar, mas que me permitiu compreender,
ainda que muito pela rama, como é sentir-nos isolados porque diferentes num
universo que, com exceção da nossa presença, parece perfeitamente homogéneo).
Todos olharam com curiosidade para o
branquela de mochila às costas – e 99% dos que ali estavam não eram goeses, não
eram católicos, não tinham qualquer afinidade com Portugal (traduzisse-se ela
em amor ou ódio pelo nosso retângulo): eram imigrantes da grande Índia, que
praticamente não falavam inglês e ali viviam, de trabalhos precários e com muitos
apertos, ao longo de uma estrada ribeirinha com cheiro a peixe podre. Podiam
ter sido rudes, podiam ter sido indiferentes. Afinal, eu era o elo mais fraco,
e eles, provavelmente, não terão razões para acalentar especial simpatia pelos
ocidentais. No entanto, no dia seguinte – e nas muitas manhãs que se lhe
seguiram – que diferença! De caras sorridentes, acenavam ao branquela
inofensivo que, quase sempre à mesma hora, ia pelo meio deles no ferry junto à cidade, na confusão pacata
que carateriza aquelas terras fronteiras a Pangim. E o branquela retribuía,
claro, aliviadíssimo, enquanto via ao longe, já no final do trajeto, a
maravilhosa barra do Mandovy, que a pobreza e o desmazelo urbanístico não
conseguem desfear. Confesso, contudo, que nunca aceitei os desafios para cortar
o cabelo ou fazer a barba nas várias lojinhas, mais ou menos improvisadas, que
havia pelo caminho!
Ou
em algumas reuniões de alunos de estudos pós-graduados, onde a minha eterna
condição de jurista-que-gosta-de-história ou de historiador-que-tem-formação-jurídica
se tornava mais evidente e difícil de sustentar. Todos nós, que temos “um pé em
cada continente” (do saber) sofremos, por vezes, estas crises.
Ou
naqueles “meetings” de colegas que nem sequer são amigos – aos quais vamos por
obrigação social, ou porque alguém especial insistiu na nossa (ainda que
amuada) presença – em que nos sentimos desconfortáveis e fora do contexto, e só
pensamos “Mas QUEM é que é esta gente? De
onde é que eles saíram? Eu não os conheço nem tenho vontade nenhuma em
conhecê-los”. E, olhando de soslaio para o relógio, enquanto se mata o
tempo com uma qualquer e banalíssima conversação (nunca tive qualquer problema
em manter conversa social, antes pelo contrário, dizem que até consigo dialogar
com uma pedra! LOL) suspiramos para que chegue célere a hora da debandada!
Ou
ainda quando defendemos um ponto de vista diverso de todos os que nos rodeiam e
estamos convencidos de que a nossa forma de perspetivar a questão é a mais
acertada, e que os que nos circundam ou emburreceram de vez, ou acham-se a
sofrer de um momentâneo delírio coletivo que os impede de ver a razão – que, é
claro, é a solução que advogamos
Ou,
por fim, quando os que estão à nossa beira caluniam e vituperam algo que nós
defendemos ou uma causa que compreendemos e partilhamos, e cobardemente nos
agachamos não tendo a coragem de sustentar o nosso ponto de vista, mesmo que
nos sintamos uma voz ténue a bradar no imenso deserto…
No
entanto, em todas estas situações – que, afinal, também são de “solidão
acompanhada” – todos nós (ou quase todos nós) podemos reagir de forma enérgica.
Se eu quisesse, podia não continuar no Pio, ou passar a jantar fora, ou no meu
quarto (bem burro teria sido, pois teria perdido momentos fantásticos!), ou
podia ter voltado costas a Britona, ou, ainda, passado a ir para Pangim de táxi
(mas teria sentido Goa como creio ter sentido? Julgo que não…). E posso
escolher os grupos em que me envolvo, e abandoná-los quando me apetecer. Posso
esgrimir argumentos quando estou em desacordo e a melhor maneira de vencer a
sensação de cobardia é mesmo não nos agacharmos e sustentarmos os nossos pontos
de vista e lutarmos em prol dos ideais em que acreditamos. Mesmo que os que nos
rodeiam pareçam não estar de acordo com eles.
Podemos
sempre dizer (mais ou menos veementemente, conforme necessário) “basta!” e partir para outros prados.
Somos livres para escolher.
E
foi esse contraste com o que vi hoje na missa que me impressionou. A grande
classicista – mercê da idade e das limitações que a mesma acarreta – já não
pode dizer “basta!”. Outros, mais
jovens, podem estar também em situações similares: quem está acorrentado por
vícios castradores, por chantagens levadas a cabo por escroques, por dívidas a
agiotas pouco escrupulosos (há agiotas com escrúpulos?), pela crise que tudo
corta cerce, pela ignorância que não permite deixar de viver num triste breu.
Para
eles, a “solidão acompanhada” ainda é mais dolorosa do que quando nós a
sentimos: é uma sensação continuada, que deve ir moendo continuadamente, até
que um dia cedemos.
Oxalá
nunca nenhum de nós jamais a sinta e que tenhamos sempre forças para a combater
e enxotar para um canto escuro! J
1 Comments:
"se fizeres o que sempre fizeste, terás o que sempre tiveste!"
se não o fizermos, se acumularmos diferentes experiências e saberes, estou certa que estaremos sempre aptos para atacar essa "solidão acompanhada"!
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