Tuesday, September 04, 2012

MARLENE NA JUNTA


- Marlene, querida, há que tempos que não te via! (Schmack, schmack, duas sonoras beijocadelas a acompanhar a saudade sentida!). Tinha perguntado por ti à Edite, e ela também não sabia nada… pensámos até em passar lá por casa, mas, sabes como é, com o Quim e os miúdos…
- Claro, fofa! Nós também saímos assim de repente, deu-lhe na veneta ao Zé Rafael, pegámos no Afonso Rubim e fomos até ao Algarve. Amei!
- Ih, Jesus, ao Algarve! Isso é muito longe, aos anos que não passo da Vieira (de Leiria, subentenda-se)…
- Foram lá este ano?
- Olha, nem isso. A minha sogra está muito mal, a perna direita já não mexe, e no posto de saúde dizem que não há nada a fazer. Estivemos lá hoje, cedinho…
- E foi bem bom, fofa! Como arranjaram senha? (volta-se para o filho, que brinca deitado num banco ao lado de um par de idosos de aparência centenária) Afonso Rubim! Se chateias as pessoas é certo que apanhas! E, depois, nada de praia!
(Afonso Rubim ergue-se indignado)
- Mas, mãe, eu estava aqui a falar com ela…
- Não é ela, é “esta senhora”!
- Com esta senhora…
- “Senhora”!? Que disparate! Isso é lá maneira de tratar a Zefa! Não te lembras da Zefa, Afonso Rubim? A tia da Nanda, que mora ao lado do avô?
- Não…. (replica, quase num murmúrio, o miúdo)
- A que te dava tacinhas de geleia, Afonso, filho!
- Ah! A velha dos gatos!
- Afonso Rubim!
- A senhora velha dos gatos? (Afonso Rubim estava cada vez mais confuso!)
- A ZEFA! E, Zefa, como é que está tudo? Está bem rijinha, pelo que vejo. Nem se lhe notam os anos!
(Zefa/senhora Zefa/ velha dos gatos retorque, num tom baixo mas cantante)
- Ai filha, bem, bem, já nunca me sinto. Mas venho quase todos os dias aqui passar um migalhinho da tarde, e sempre me vou consolando.
- Então não tem senha? Não vem nem aos correios nem ao balcão da junta?
- Fazer o quê? Hoje não é dia de levantar a pensão. Olha, passo por cá para uma conversita com a Marisa ali da biblioteca…
- Mãe, o que é uma biblioteca? (atira Afonso Rubim)
- É uma sala com muitos livros e um computador (deliciosa adaptação à modernidade! Quando o escriba era pequeno, era apenas uma sala com muitos livros)
- Computador? (repete Afonso Rubim, a quem a conversa começou a interessar)
- Sim, filho, mas acho que não tem jogos. Mas vai lá, vai lá à Marisa perguntar-lhe. (Afonso Rubim abandona a sala de espera num ápice)
- Belo garoto (comenta Zefa, nas costas do filho de Marlene). O teu Fonsinho é o Zé Rafael por uma pena!
- Faz-me muita companhia, coitadinho (admite Marlene), e está tão nervoso com a escola! Vai entrar agora para o primeiro ano!
- Não te apoquentes, filha (Guida volta a entrar na conversa, demonstrando, pelo semblante grave, a muita experiência que tem no assunto, mercê de três crianças todas já em idade escolar). Vais ver… ele entra, e nem se volta. Nem um “ai”, nem um “tchau”, é um ver-se-te havias para ir ter com os outros cachopos!
- Nem um “tchau”? (Sente-se uma ligeira tremura na voz de Marlene. Achará que um bom filho deverá ensaiar uma entrada escolar envolta em maior dramatismo?) Nem um beijo na mãe?
- Nada, filha! Mete-se a correr!
- Ai, fofa, que isso vai custar-me…
(Afonso Rubim regressa à sala de espera, e vai ter com a progenitora)
- Mãe, a Marisa não tem jogos mas disse-me que o filho dela também vai para a escola! E a tua senha? Estás quase?
- Primeiro está a Guida! O que vens cá fazer, fofa?
- Olha, várias coisas: dar um beijinho à Rute, que é o primeiro dia que está cá a trabalhar, em substituição da Lara, que está de bebé, mandar um fax e entregar esta bolsa que deixaram lá no centro há um ror de tempo Sabes de quem é? (mostra um velho porta-moedas) Vim com o Quim, que está ali na internet a ver se ela lhe dá uma guia ou lá que diabo é para cortar uns pinheiros. E tu?
- Vou mandar um secador para a minha irmã, na Suíça. Já está um pouco usado, mas funciona que é uma maravilha! E sempre se poupa…
- Ah, e agora têm aqui umas caixas que servem bem para isso. Sentes saudades de lá?
- Olha, às vezes. E o Afonso Rubim fala muito nos primos! E já quase não percebe nada de outras línguas que não seja o português, esqueceu tudo… Também, era muito miúdo quando viemos para cá. Mas vamos lá no Natal. É tão perto!
- E têm casa, e tudo, é só mesmo a viagem…
- É isso! E olha que me parece mais perto e fácil do que ir a Lisboa… essa sim, é longe!
- E cara!
- Cara, cara, cara por causa deste tempo! Desta crise!
- É a troika, já sabes (e percebe-se bem que Guida não sabe ela própria muito bem o que é a troika…)
- Qual troika, fofa?! Sei lá eu dessa troika, e onde está ela? A culpa é da câmara da Figueira! Esses sim, tudo comeram, e nada deixaram ao povo!
(o número 27 piscou no ecrã, e Guida entrou na salinha que serve de posto de correios e balcão de atendimento da junta. Beijou repenicadamente Rute, e encetaram logo uma conversa animada. Afinal, a bolsa era da madrinha da nova funcionária, que a reconheceu ato imediato)
Eu era o número 30. Á minha frente, um velhote ainda vinha buscar uns dinheiros; depois de mim, esperavam pelo menos mais cinco pessoas. Estamos todos a menos de dez quilómetros da Figueira, a três do mar, de uma praia conhecida por todos os conimbricenses, Q. Mais: estamos numa vila relativamente populosa e longe de ser miserável. Estamos na junta, onde as pessoas se encontram, vêm matar a solidão conversando com a(s) Marisa(s), trocam impressões, acedem aos serviços dos CTT, mantêm, enfim, ligações com um mundo cujas dimensões não têm forçosamente de coincidir com as do nosso. Um mundo onde, política e institucionalmente, o mais longe que muitos conseguem vislumbrar é a vizinha câmara da Figueira, sendo a troika uma entidade distante e difusa, de contornos vagos e, por isso, menos temível (o que não me deixou de lembrar uma historieta que remonta já aos anos 20/30 do século passado quando o governador civil da Guarda se deslocou a um lugarejo perdido na Serra, onde se ia proceder à inauguração dos primeiros focos de luz elétrica. Nessa ocasião, uma velha criada apanhou uma das deceções da sua longa vida: afinal, essa figura mítica, distante e digna de todo o respeito que era, para ela e para tantos, o dito governador, não passava de um simples homem de carne e osso, que andava, falava e comia como todos os mortais!). Um mundo onde a Suíça – terra para onde se emigra e onde se deixam parentes e amigos – se sente mais próxima do que Lisboa e o Algarve. Um mundo que não é pior nem melhor, apenas diferente. Mas um mundo onde a junta de freguesia, em cuja pequena sala de entrada todos nos acotovelávamos, constitui inegavelmente, apesar das limitações de que enferma e dos vícios de que eventualmente padeça, um importantíssimo polo agregador. Zefas, Laras, Marlenes, Guidas, Afonsos Rubins, Quins (os nomes são falsos, as historietas não)… e Luíses (que também precisam dela quando estão de férias naquelas paragens) percebem a importância da manutenção de muitas destas juntas (não todas, atenção, mas, certamente, de muitas), sobretudo as das zonas mais rurais.
Ontem, Sampaio da Nóvoa sublinhava, na RTP, uma evidência que tendemos a constantemente esquecer: não há um só Portugal, mas muitos portugais. A tentação de nivelar todo o nosso pequeno território sem olhar a especificidades é grande, não o nego, e parece constituir um remédio eficaz a curto prazo. Mas, não nos iludamos: a médio prazo, não trará consequências péssimas, e difíceis de sanar?
Sem catastrofismos à Medina Carreira (também o vi ontem… o que diabo estava a fazer LÁ o Pedro Lomba? O que se passa com ele?), e neste delicioso período de rentrée (de um calor abrasador, que me delicia e vivifica) procuremos, todos, ter presentes as bem sensatas palavras de António Manuel Hespanha, no mote em torno do qual se alicerça grande parte da sua investigação
“Nunca podemos avaliar um instituto jurídico descontextualizado do seu âmbito sócio-cultural e económico de aplicação”.
Substituam, se quiserem, “instituto jurídico” por “juntas de freguesia” (entre muitos outros organismos) e obteremos, assim, uma boa base para lançar mãos à obra!
Boa rentrée para os leitores destes Prazos serrazinescos, com o cheiro agradável do recomeço das aulas, do ano judicial, e de tantas outras coisas igualmente interessantes! ;)

4 Comments:

At 2:52 AM, Blogger Joanight said...

adorei a definição moderna de biblioteca :D

 
At 9:22 AM, Blogger coisasnumacaixa said...

ahhhhh...este post foi um bálsamo na minha tarde de procesos chatos, chatíssimos! viva a rentrée!

 
At 2:20 PM, Blogger JPM said...

Eu ia jurar que estavas a falar de um qualquer IEFP..

Está muito bem conseguido sim senhor: acho que nunca tive tanto interesse numa conversa entre a Marlene e a senhor Zefa

 
At 2:20 PM, Blogger JPM said...

Eu ia jurar que estavas a falar de um qualquer IEFP..

Está muito bem conseguido sim senhor: acho que nunca tive tanto interesse numa conversa entre a Marlene e a senhor Zefa

 

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