O GRITO DA MULA-SEM-CABEÇA
Na
sala dos meus Pais (que, antes, já foi a sala dos meus Avós), resguardada por
uma velha moldura de Macau, uma família de ar solene e atavios pouco adequados
ao calor tropical olha, desde a S. Paulo de 1905 e dos ecos dos engenhos nordestinos, a sua descendência
que, ano após ano, vai crescendo e evoluindo. Todos nós sabemos que a senhora
que está sentada com o seu filho varão mais velho ao colo, espartilhada e com
ar de poucos amigos, é a Avó da Avó, a quem chamamos Avó Joaninha, e de quem conhecemos dúzias de histórias e
historietas, que a sua neta – e minha Avó – se encarregou de perpetuar, quer
por via oral, quer em algumas anotações esparsas. A Avó Joaninha foi uma
influência da maior importância na vida e no imaginário da sua neta primogénita
(que, por sua vez, foi, anos depois, minha Avó) e transmitiu-lhe uma tal aura
de misterioso encantamento relativamente ao seu Brasil natal, aos engenhos do Ceará, à vida patriarcal dos
vaidosos Cavalcanti e Albuquerques quinhentões
dos quais descendia, às idas a Fortaleza, aos episódios picarescos e
pitorescos das elites brasileiras do século XIX que a minha Avó, que jamais
visitou a América Latina, sempre manteve uma simpatia especial por aquela
parcela do mundo lusófono. E, graças à Avó (e, afinal, à Avó da Avó) todos nós
mantemos essa afinidade difícil de definir com o Brasil, a qual vale, creio eu,
bem mais do que quaisquer lingotes de ouro que os Cavalcantis tivessem
entesourado. Ainda hoje a minha mana, como rapariga mais velha da sua geração
desta velha linhagem que começou brasileira mas agora já é lusitana, conserva,
desde os seus quinze anos, o anel que, há muito, passa de mãe para filha quando
perfazem aquela idade. É, com toda a probabilidade, a mais modesta das muitas e
valiosas joias que Joaninha possuiu – mas não será a mais simbólica, desde logo
por rescender a essa herança tropical?
Quando
penso na Avó Joaninha, associo-a, naturalmente, às histórias difusas que a
minha própria Avó contava sobre ela. Nascera num engenho, o pai morrera cedo, a
mãe voltara a casar com outro senhor de
engenho. A madrinha morava em Fortaleza. Houve um período de secas muito
grave e as vacas do engenho vinham para redor da casa grande morrer de sede. Teve apenas um irmão inteiro (que, como
era de bom tom naquela época, se licenciou em direito no Rio) mas muitos
meios-irmãos e irmãs. A sua mãe ensinava os “empregados” (um suave eufemismo
para escravos?) a ler e a escrever e tinha uma verdadeira fúria anti
iliteracia. Era aparentada (sobrinha?) de um historiador muito famoso:
Capristano de Abreu. Quando casou, a família achou o apelido do marido, Freire
da Cruz, um tanto banal, e gozava dizendo Cruzes,
vai casar com um Cruz! Teve uma tia que casou, aos 13 anos, com um homem
muito mais velho que, por sua vez, era seu tio. E várias coisas do género. E,
quando ouvíamos a Avó, imaginávamos esses velhos casarões do Brasil de cariz
colonial, onde havia muitas vacas, muitos empregados, muitos Cavalcantis e uma
menina chamada Joaninha em torno da qual todo aquele mundo distante e
fantástico parecia girar. E – que curioso! – a tal menina ainda era da nossa
família, porque era Avó da Avó! Era interessante imaginar como seriam essas pessoas
(a Avó Joaninha era fácil, porque subsistem várias fotos) que tinham um nomes
muito mais doces (Joaninha, Avó Dom-Dom,
Jacy, Vicentinha…) do que os austeros que usavam as antepassadas portuguesas,
entre os quais se encontram “pérolas” como Petronila, Clara Augusta, Maria Francisca
de Sales, Maximina Júlia, Umbelina Leopoldina, Doroteia Eufrásia Narcisa (eu
juro que tenho uma 7ª avó chamada Doroteia Eufrásia Narcisa Teixeira Monteiro
de Carvalho, a qual tinha uma cunhada que dava pelo nome próprio de Maria
Madalena do Amor Divino!!), Telésfora, Úrsula Rosa Tomásia and so long.
Como
literata e dedicada herdeira e cultora desse legado “simbólico” (digamos assim)
brasileiro, a minha Avó, filha da sua geração, dispunha, na sua rica
biblioteca, da maior parte das obras de Gilberto Freyre. Muitos anos mais
tarde, quando eu – que acabei por dedicar parte dos meus estudos ao direito
colonial – peguei nelas para as estudar, vieram-me (e ainda vêm, nas muitas
ocasiões em que as consulto) à memória as histórias da minha antepassada
Joaninha e seus familiares nas imensidões do Nordeste. Confesso que, até hoje,
ainda não percebi se foi, de alguma forma, a leitura das obras de Freyre que
acabou por condicionar a visão da minha Avó relativamente ao Nordeste senhorial
(e que esta, depois, a acabou por transmitir mesclada com os dados relativos à
vida da sua própria avó); se Freyre plasmou de um modo tão notável as dinâmicas
daquelas gentes e daquelas paragens que, de facto, de adequam bastante
convincentemente ao caso particular da família da Avó Joaninha; ou, ainda, se
não houve, graças ao talento literário da minha Avó, uma mescla de ambos – a
qual, a ter existido, acrescente-se, resultou particularmente feliz. Por isso,
ainda hoje, quando percorro as obras de Freyre, sinto em muitas delas uma suave
familiaridade que (gosto de acreditar) constitui um importante auxílio nos meus
trabalhos de pesquisa. Exploramos melhor aquilo com que mantemos uma qualquer
ligação ou afinidade, por muito ténue (ou muito negativa: posso aprofundar um
assunto porque me causa especial repulsa, seja para a combater, seja para
demonstrar o quão repugnante é) que seja. E, graças a esta mescla Avó Joaninha/Avó
do Luís/Gilberto Freyre, o mundo das Casas
Grandes, embora distante temporal e geograficamente, ainda é, de alguma
forma, inteligível, mesmo que sabendo (e eu sei, naturalmente) que se trata
somente de uma visão da questão, uma das muitas possíveis. Mais ainda: que se
trata de uma visão a partir do ângulo dos (poucos) privilegiados do tempo. Mas…
afinal, eu estudo elites coloniais, não estudo? ;)
Outro
dos autores que – não tão paradoxalmente quanto possa parecer – me ajudou a
compreender melhor este mundo de engenhos,
roças, criadagem e Cavalcantis, tudo repassado por uma nostalgia feliz que a
Avó Joaninha, certamente saudosa da sua infância, se encarregou de transmitir à
neta, foi Monteiro Lobato, sobretudo através do conjunto das suas obras
relativas à vida no que ficou para a posteridade conhecido pelo nome genérico
de sítio do Pica-pau Amarelo.
Curiosamente, Monteiro Lobato, também ele descendente das elites coloniais do
velho Brasil, terá fantasiosamente recriado as boas recordações que conservara
do engenho do seu avô. Não se notam aqui algumas semelhanças com a história da
minha própria família? Certamente. Ora, relativamente ao Sítio e aos seus habitantes mais ou menos habituais (existem, como
todos sabemos, os tendencialmente fixos e os que só esporadicamente surgem),
tive a sorte de beneficiar de um duplo-contacto: por um lado, filho da minha
geração, adorava ver os episódios na
TV (há uns tempos descobri, no youtube,
um vídeo do ex-Pedrinho na atualidade, pai de filhos e creio que vendedor, que
me pareceu estranhíssimo! LOL); por outro, neto de uma Avó que apreciava e
“colecionava” livros em grandes quantidades, pude ler os originais de Monteiro
Lobato. Essa foi, como referi, uma outra forma de entrar em contacto com a
costela brasileira advinda da Avó Joaninha, e de encarar, sem estranhezas de maior,
os relatos de um Brasil profundo que, graças a toda esta fusão, sempre me
pareceu ser um lugar extremamente aprazível, soalheiro e, de alguma forma,
familiar.
Tudo
isto teve consequências, sendo uma delas a amálgama que, inadvertidamente, faço
de Freyre, Monteiro Lobato e dos relatos relativamente à minha própria família.
É verdade que eu sei bem que Dona Benta não é a Avó Dom-Dom, mas há traços de uma e outra que talvez confunda; bem como
que o velho coronel Encerrabodes de Oliveira (de quem Dona Benta há tanto
enviuvara) não é o Avô Pedro Galvão d’Albuquerque (pai da Avó Joaninha) ou os senhores de engenho imortalizados por
Freyre: mas todos se confundem, em maior ou menor medida, no meu imaginário. E
Narizinho? Será uma Joaninha mais moderna, ainda que também já remota? E a Tia
Nastácia? Uma das empregadas de que a Avó Joaninha falava? Outro aspeto
interessante é a própria casa do sítio: para mim, não é nada como a da série.
Tem grandes balcões, é certo, mas aproxima-se muito mais dos casarões descritos e esboçados por
Freyre. E o sítio é, em simultâneo,
um engenho, onde, ao lado do Quindim, mais afastadas, há vacas e, quem sabe,
uma fabriqueta de extração de açúcar, pela qual os sacis passam depois do
anoitecer. Mas não convém ir lá a desoras, caso contrário podemos ter um
encontro indesejável com a mula-sem-cabeça!
Foi,
por tudo isto, que me causou profundo desagrado uma notícia de que a minha
colega Núbia (brasileira a residir em Portugal) me deu conta há um par de dias:
o STF brasileiro equaciona retirar do lote de leituras escolares do ensino
público as obras de Monteiro Lobato, sob acusação de as mesmas serem racistas!
Acredito que o STF agirá da forma mais correta possível, e que dispõe de bons
argumentos para analisar a questão. E sei, também, que o espantado desagrado
que esta notícia me causou se deve à mescla que acima referi: ao desaprovar a
mensagem do Sítio, estão também a
reprovar a minha própria história (ainda que com contornos mitificados)
familiar? Disso, confesso, não gosto mesmo nada!
Creio
que se devem ter em conta duas ideias sobre este assunto. Por um lado, que –
mesmo que se considere racista (e HOUVE racismo, e HOUVE escravatura, e não é
escondendo-os que eles deixam de ter existido), o que, pessoalmente, acho MUITO
discutível – a obra de Monteiro Lobato é, naturalmente, uma obra datada. E é
isso que deve ser dito. A história explica-se, não se omite nem se doura. Foi
assim, porque era assim que as pessoas agiam e pensavam. Hoje reprovamos, mas
temos de ter a humildade de pensar que a nossa maneira de ver o mundo, ainda
que acreditemos na sua superioridade face às demais, não é a única. Se
quisermos esconder a história, se quisermos ser “politicamente corretos” – e,
sejamos francos, se quisermos ser mais “europeus”, ou “norte americanos”, nem
que para isso tenhamos de sacrificar traços fundamentais do nosso passado (que,
por vezes, consideramos ser vergonhosa e provincianamente tropical-kitsch) – o resultado desembocará em asneira. Gente sem
referências (goste ou não goste delas) é gente desajustada, e gente desajustada
é (tendencialmente) gente infeliz (desde logo porque é ignorante, e a
ignorância é causa de tenebrosa infelicidade, sobretudo quando não nos damos
conta dela!). Que bom governante pode desejar tal coisa?
Por
outro lado, creio não conhecer ninguém que considere as obras de Monteiro
Lobato racistas. Ok, ok, eu lembro-me que Dona Benta falava na “sua” Nastácia,
e que era esta quem fazia todos os trabalhos pesados, bem como que o Tio
Barnabé fora um escravo que agora morava numa casinha (seria um vestígio de senzala?) e não na casa grande. Mas todos os leitores do Sítio adoram a Ti Nastácia e o Tio Barnabé, tanto quanto a avó Dona
Benta e, certamente, muito mais do que os vestígios já arqueológicos da memória
do velho Coronel Encerrabodes, dos outros vizinhos também Coronéis, do Visconde
(não representa ele um titular branco?) cheio de si e da mãe de Pedrinho, Dona
Tonica, que jamais põe o pé no sítio! Nunca, das muitas vezes que li os originais
e vi a série, tal me passou pela cabeça. Mas, e mesmo que se considere
desconfortável a presença destes personagens,
Afastar
o nosso passado é uma coisa dramática, é perdermos uma rede que, de alguma
forma, ajudou a que fôssemos como somos, e nos ajuda a compreendermo-nos
melhor. Se, de rajada, me dissessem “esquece
tudo sobre a Avó Joaninha e esse pretenso legado brasileiro que a tua Avó
ajudou a conservar, pois rescende a um luso-tropicalismo inadmissível”, eu,
certamente, não o conseguiria fazer. E, caso (e era improvável) o tentasse
fazer, sentir-me-ia sempre meio coxo.
Ressalvadas
as devidas distâncias, não se passará algo idêntico a todos aqueles (e,
note-se, não falo só de brasileiros) a quem se vete a leitura das obras de
Monteiro Lobato, ao invés de se procurar explicá-las convenientemente, por se
considerarem “incómodas”?
Por
outro lado, e na verdade, eu acho é que os textos de Monteiro Lobato
(nomeadamente os relativos ao Pica-pau
Amarelo) constituem verdadeiras lições de vida. Quanta ironia e verdade
(ainda hoje, é preciso é compreender!) há, por exemplo, na vã fatuidade do
Visconde, ou no facto de a Emília, para ser marquesa à força, casar com Rabicó?
Quantos conhecemos como Quindim: da aparência bruta e grosseira, mas caráter
dócil e boas pessoas? Quantas cucas não
temos nós nas nossas vidas? Não são elas os temores que procuramos vencer? E
quantos sacis? Não são eles quem nos levam a tentar ousar, como acontecia com
Pedrinho? E a mula-sem-cabeça? Não é ela uma perfeita ilustração dos problemas
grandes, e de difícil solução, que sabemos existir e que, de vez em quando,
para não nos esquecermos deles (como se isso fosse possível!) dão um arzinho da
sua graça? E não é bom termos uma família que se preocupa e, quando necessário,
ralha e critica mas nos ampara nos nossos projetos como Dona Benta, Ti Nastácia
e Tio Barnabé? E que ainda por cima nos recompensa?
Faço
votos para que o STF brasileiro não opte pelo afastamento deste precioso
tesouro literário. E que, caso sequer pondere tal hipótese, ecoe, vindo desde
os sertões e desde os velhos engenhos – terras da Avó Joaninha, de Freyre, de
Monteiro Lobato, de Dona Benta e de Tia Nastácia, da Narizinho e do Pedrinho –,
passando pelos salões das casas grandes e
pelos miseráveis vestígios das senzalas, pondo em alerta um mundo ao qual todos
tanto devemos e que é fundamental para a compreensão do espaço lusófono, um som
impossível: que o grito da mula-sem-cabeça nos faça despertar para o facto de a
nossa especificidade ser a nossa riqueza, e que se avança compreendendo, não
afastando ou escondendo.
1 Comments:
Confesso que a mula-sem-cabeça não tem uma espaço tão forte na minha infância como na tua, e que a avó T. e os seus formidáveis relatos tiveram muito mais impacto na extrema ligação que sinto com o Brasil (sem nunca sequer o ter - ainda! - visitado). E concordo que a falta de contextualização é assustadora e que infelizmente nos tempos que correm as pessoas preferem cortar o assunto do que ter de o explicar...o que é verdadeiramente assustador!
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