Thursday, September 13, 2012

O GRITO DA MULA-SEM-CABEÇA


Na sala dos meus Pais (que, antes, já foi a sala dos meus Avós), resguardada por uma velha moldura de Macau, uma família de ar solene e atavios pouco adequados ao calor tropical olha, desde a S. Paulo de 1905 e dos ecos dos engenhos nordestinos, a sua descendência que, ano após ano, vai crescendo e evoluindo. Todos nós sabemos que a senhora que está sentada com o seu filho varão mais velho ao colo, espartilhada e com ar de poucos amigos, é a Avó da Avó, a quem chamamos Avó Joaninha, e de quem conhecemos dúzias de histórias e historietas, que a sua neta – e minha Avó – se encarregou de perpetuar, quer por via oral, quer em algumas anotações esparsas. A Avó Joaninha foi uma influência da maior importância na vida e no imaginário da sua neta primogénita (que, por sua vez, foi, anos depois, minha Avó) e transmitiu-lhe uma tal aura de misterioso encantamento relativamente ao seu Brasil natal, aos engenhos do Ceará, à vida patriarcal dos vaidosos Cavalcanti e Albuquerques quinhentões dos quais descendia, às idas a Fortaleza, aos episódios picarescos e pitorescos das elites brasileiras do século XIX que a minha Avó, que jamais visitou a América Latina, sempre manteve uma simpatia especial por aquela parcela do mundo lusófono. E, graças à Avó (e, afinal, à Avó da Avó) todos nós mantemos essa afinidade difícil de definir com o Brasil, a qual vale, creio eu, bem mais do que quaisquer lingotes de ouro que os Cavalcantis tivessem entesourado. Ainda hoje a minha mana, como rapariga mais velha da sua geração desta velha linhagem que começou brasileira mas agora já é lusitana, conserva, desde os seus quinze anos, o anel que, há muito, passa de mãe para filha quando perfazem aquela idade. É, com toda a probabilidade, a mais modesta das muitas e valiosas joias que Joaninha possuiu – mas não será a mais simbólica, desde logo por rescender a essa herança tropical?
Quando penso na Avó Joaninha, associo-a, naturalmente, às histórias difusas que a minha própria Avó contava sobre ela. Nascera num engenho, o pai morrera cedo, a mãe voltara a casar com outro senhor de engenho. A madrinha morava em Fortaleza. Houve um período de secas muito grave e as vacas do engenho vinham para redor da casa grande morrer de sede. Teve apenas um irmão inteiro (que, como era de bom tom naquela época, se licenciou em direito no Rio) mas muitos meios-irmãos e irmãs. A sua mãe ensinava os “empregados” (um suave eufemismo para escravos?) a ler e a escrever e tinha uma verdadeira fúria anti iliteracia. Era aparentada (sobrinha?) de um historiador muito famoso: Capristano de Abreu. Quando casou, a família achou o apelido do marido, Freire da Cruz, um tanto banal, e gozava dizendo Cruzes, vai casar com um Cruz! Teve uma tia que casou, aos 13 anos, com um homem muito mais velho que, por sua vez, era seu tio. E várias coisas do género. E, quando ouvíamos a Avó, imaginávamos esses velhos casarões do Brasil de cariz colonial, onde havia muitas vacas, muitos empregados, muitos Cavalcantis e uma menina chamada Joaninha em torno da qual todo aquele mundo distante e fantástico parecia girar. E – que curioso! – a tal menina ainda era da nossa família, porque era Avó da Avó! Era interessante imaginar como seriam essas pessoas (a Avó Joaninha era fácil, porque subsistem várias fotos) que tinham um nomes muito mais doces (Joaninha, Avó Dom-Dom, Jacy, Vicentinha…) do que os austeros que usavam as antepassadas portuguesas, entre os quais se encontram “pérolas” como Petronila, Clara Augusta, Maria Francisca de Sales, Maximina Júlia, Umbelina Leopoldina, Doroteia Eufrásia Narcisa (eu juro que tenho uma 7ª avó chamada Doroteia Eufrásia Narcisa Teixeira Monteiro de Carvalho, a qual tinha uma cunhada que dava pelo nome próprio de Maria Madalena do Amor Divino!!), Telésfora, Úrsula Rosa Tomásia and so long.
Como literata e dedicada herdeira e cultora desse legado “simbólico” (digamos assim) brasileiro, a minha Avó, filha da sua geração, dispunha, na sua rica biblioteca, da maior parte das obras de Gilberto Freyre. Muitos anos mais tarde, quando eu – que acabei por dedicar parte dos meus estudos ao direito colonial – peguei nelas para as estudar, vieram-me (e ainda vêm, nas muitas ocasiões em que as consulto) à memória as histórias da minha antepassada Joaninha e seus familiares nas imensidões do Nordeste. Confesso que, até hoje, ainda não percebi se foi, de alguma forma, a leitura das obras de Freyre que acabou por condicionar a visão da minha Avó relativamente ao Nordeste senhorial (e que esta, depois, a acabou por transmitir mesclada com os dados relativos à vida da sua própria avó); se Freyre plasmou de um modo tão notável as dinâmicas daquelas gentes e daquelas paragens que, de facto, de adequam bastante convincentemente ao caso particular da família da Avó Joaninha; ou, ainda, se não houve, graças ao talento literário da minha Avó, uma mescla de ambos – a qual, a ter existido, acrescente-se, resultou particularmente feliz. Por isso, ainda hoje, quando percorro as obras de Freyre, sinto em muitas delas uma suave familiaridade que (gosto de acreditar) constitui um importante auxílio nos meus trabalhos de pesquisa. Exploramos melhor aquilo com que mantemos uma qualquer ligação ou afinidade, por muito ténue (ou muito negativa: posso aprofundar um assunto porque me causa especial repulsa, seja para a combater, seja para demonstrar o quão repugnante é) que seja. E, graças a esta mescla Avó Joaninha/Avó do Luís/Gilberto Freyre, o mundo das Casas Grandes, embora distante temporal e geograficamente, ainda é, de alguma forma, inteligível, mesmo que sabendo (e eu sei, naturalmente) que se trata somente de  uma visão da questão, uma das muitas possíveis. Mais ainda: que se trata de uma visão a partir do ângulo dos (poucos) privilegiados do tempo. Mas… afinal, eu estudo elites coloniais, não estudo? ;)
Outro dos autores que – não tão paradoxalmente quanto possa parecer – me ajudou a compreender melhor este mundo de engenhos, roças, criadagem e Cavalcantis, tudo repassado por uma nostalgia feliz que a Avó Joaninha, certamente saudosa da sua infância, se encarregou de transmitir à neta, foi Monteiro Lobato, sobretudo através do conjunto das suas obras relativas à vida no que ficou para a posteridade conhecido pelo nome genérico de sítio do Pica-pau Amarelo. Curiosamente, Monteiro Lobato, também ele descendente das elites coloniais do velho Brasil, terá fantasiosamente recriado as boas recordações que conservara do engenho do seu avô. Não se notam aqui algumas semelhanças com a história da minha própria família? Certamente. Ora, relativamente ao Sítio e aos seus habitantes mais ou menos habituais (existem, como todos sabemos, os tendencialmente fixos e os que só esporadicamente surgem), tive a sorte de beneficiar de um duplo-contacto: por um lado, filho da minha geração, adorava ver os episódios na TV (há uns tempos descobri, no youtube, um vídeo do ex-Pedrinho na atualidade, pai de filhos e creio que vendedor, que me pareceu estranhíssimo! LOL); por outro, neto de uma Avó que apreciava e “colecionava” livros em grandes quantidades, pude ler os originais de Monteiro Lobato. Essa foi, como referi, uma outra forma de entrar em contacto com a costela brasileira advinda da Avó Joaninha, e de encarar, sem estranhezas de maior, os relatos de um Brasil profundo que, graças a toda esta fusão, sempre me pareceu ser um lugar extremamente aprazível, soalheiro e, de alguma forma, familiar.
Tudo isto teve consequências, sendo uma delas a amálgama que, inadvertidamente, faço de Freyre, Monteiro Lobato e dos relatos relativamente à minha própria família. É verdade que eu sei bem que Dona Benta não é a Avó Dom-Dom, mas há traços de uma e outra que talvez confunda; bem como que o velho coronel Encerrabodes de Oliveira (de quem Dona Benta há tanto enviuvara) não é o Avô Pedro Galvão d’Albuquerque (pai da Avó Joaninha) ou os senhores de engenho imortalizados por Freyre: mas todos se confundem, em maior ou menor medida, no meu imaginário. E Narizinho? Será uma Joaninha mais moderna, ainda que também já remota? E a Tia Nastácia? Uma das empregadas de que a Avó Joaninha falava? Outro aspeto interessante é a própria casa do sítio: para mim, não é nada como a da série. Tem grandes balcões, é certo, mas aproxima-se muito mais dos casarões descritos e esboçados por Freyre. E o sítio é, em simultâneo, um engenho, onde, ao lado do Quindim, mais afastadas, há vacas e, quem sabe, uma fabriqueta de extração de açúcar, pela qual os sacis passam depois do anoitecer. Mas não convém ir lá a desoras, caso contrário podemos ter um encontro indesejável com a mula-sem-cabeça!
Foi, por tudo isto, que me causou profundo desagrado uma notícia de que a minha colega Núbia (brasileira a residir em Portugal) me deu conta há um par de dias: o STF brasileiro equaciona retirar do lote de leituras escolares do ensino público as obras de Monteiro Lobato, sob acusação de as mesmas serem racistas! Acredito que o STF agirá da forma mais correta possível, e que dispõe de bons argumentos para analisar a questão. E sei, também, que o espantado desagrado que esta notícia me causou se deve à mescla que acima referi: ao desaprovar a mensagem do Sítio, estão também a reprovar a minha própria história (ainda que com contornos mitificados) familiar? Disso, confesso, não gosto mesmo nada!
Creio que se devem ter em conta duas ideias sobre este assunto. Por um lado, que – mesmo que se considere racista (e HOUVE racismo, e HOUVE escravatura, e não é escondendo-os que eles deixam de ter existido), o que, pessoalmente, acho MUITO discutível – a obra de Monteiro Lobato é, naturalmente, uma obra datada. E é isso que deve ser dito. A história explica-se, não se omite nem se doura. Foi assim, porque era assim que as pessoas agiam e pensavam. Hoje reprovamos, mas temos de ter a humildade de pensar que a nossa maneira de ver o mundo, ainda que acreditemos na sua superioridade face às demais, não é a única. Se quisermos esconder a história, se quisermos ser “politicamente corretos” – e, sejamos francos, se quisermos ser mais “europeus”, ou “norte americanos”, nem que para isso tenhamos de sacrificar traços fundamentais do nosso passado (que, por vezes, consideramos ser vergonhosa e provincianamente tropical-kitsch) – o resultado desembocará em asneira. Gente sem referências (goste ou não goste delas) é gente desajustada, e gente desajustada é (tendencialmente) gente infeliz (desde logo porque é ignorante, e a ignorância é causa de tenebrosa infelicidade, sobretudo quando não nos damos conta dela!). Que bom governante pode desejar tal coisa?
Por outro lado, creio não conhecer ninguém que considere as obras de Monteiro Lobato racistas. Ok, ok, eu lembro-me que Dona Benta falava na “sua” Nastácia, e que era esta quem fazia todos os trabalhos pesados, bem como que o Tio Barnabé fora um escravo que agora morava numa casinha (seria um vestígio de senzala?) e não na casa grande. Mas todos os leitores do Sítio adoram a Ti Nastácia e o Tio Barnabé, tanto quanto a avó Dona Benta e, certamente, muito mais do que os vestígios já arqueológicos da memória do velho Coronel Encerrabodes, dos outros vizinhos também Coronéis, do Visconde (não representa ele um titular branco?) cheio de si e da mãe de Pedrinho, Dona Tonica, que jamais põe o pé no sítio! Nunca, das muitas vezes que li os originais e vi a série, tal me passou pela cabeça. Mas, e mesmo que se considere desconfortável a presença destes personagens,
Afastar o nosso passado é uma coisa dramática, é perdermos uma rede que, de alguma forma, ajudou a que fôssemos como somos, e nos ajuda a compreendermo-nos melhor. Se, de rajada, me dissessem “esquece tudo sobre a Avó Joaninha e esse pretenso legado brasileiro que a tua Avó ajudou a conservar, pois rescende a um luso-tropicalismo inadmissível”, eu, certamente, não o conseguiria fazer. E, caso (e era improvável) o tentasse fazer, sentir-me-ia sempre meio coxo.
Ressalvadas as devidas distâncias, não se passará algo idêntico a todos aqueles (e, note-se, não falo só de brasileiros) a quem se vete a leitura das obras de Monteiro Lobato, ao invés de se procurar explicá-las convenientemente, por se considerarem “incómodas”?
Por outro lado, e na verdade, eu acho é que os textos de Monteiro Lobato (nomeadamente os relativos ao Pica-pau Amarelo) constituem verdadeiras lições de vida. Quanta ironia e verdade (ainda hoje, é preciso é compreender!) há, por exemplo, na vã fatuidade do Visconde, ou no facto de a Emília, para ser marquesa à força, casar com Rabicó? Quantos conhecemos como Quindim: da aparência bruta e grosseira, mas caráter dócil e boas pessoas? Quantas cucas não temos nós nas nossas vidas? Não são elas os temores que procuramos vencer? E quantos sacis? Não são eles quem nos levam a tentar ousar, como acontecia com Pedrinho? E a mula-sem-cabeça? Não é ela uma perfeita ilustração dos problemas grandes, e de difícil solução, que sabemos existir e que, de vez em quando, para não nos esquecermos deles (como se isso fosse possível!) dão um arzinho da sua graça? E não é bom termos uma família que se preocupa e, quando necessário, ralha e critica mas nos ampara nos nossos projetos como Dona Benta, Ti Nastácia e Tio Barnabé? E que ainda por cima nos recompensa?

Faço votos para que o STF brasileiro não opte pelo afastamento deste precioso tesouro literário. E que, caso sequer pondere tal hipótese, ecoe, vindo desde os sertões e desde os velhos engenhos – terras da Avó Joaninha, de Freyre, de Monteiro Lobato, de Dona Benta e de Tia Nastácia, da Narizinho e do Pedrinho –, passando pelos salões das casas grandes e pelos miseráveis vestígios das senzalas, pondo em alerta um mundo ao qual todos tanto devemos e que é fundamental para a compreensão do espaço lusófono, um som impossível: que o grito da mula-sem-cabeça nos faça despertar para o facto de a nossa especificidade ser a nossa riqueza, e que se avança compreendendo, não afastando ou escondendo.

1 Comments:

At 2:54 AM, Anonymous Joana said...

Confesso que a mula-sem-cabeça não tem uma espaço tão forte na minha infância como na tua, e que a avó T. e os seus formidáveis relatos tiveram muito mais impacto na extrema ligação que sinto com o Brasil (sem nunca sequer o ter - ainda! - visitado). E concordo que a falta de contextualização é assustadora e que infelizmente nos tempos que correm as pessoas preferem cortar o assunto do que ter de o explicar...o que é verdadeiramente assustador!

 

Post a Comment

<< Home