Os mais asiáticos dos europeus
Acabou
na madrugada de hoje a minha primeira temporada em Bruges – cidade cuja visita
aconselho a todos, batatas fritas e gauffres
incluídas – à cabeça de um grupo de estudantes do IPL envolvidos num exchange programme luso-belga. À
semelhança do que sempre acontece quando estou fora, descanso imenso apesar de
o trabalho apertar. Mas como é que isso é
possível?? – perguntam-me. Na verdade, creio que é a mudança de ares que me
relaxa, desde logo por em regra vir acompanhada de um período de reflexão sobre
o que tenho feito. Ou seja: estadias no exterior ajudam-me sempre (o esquema
nunca falha) a repensar a minha vida dentro das portas do nosso estremecido
retângulo.
Nem
mesmo os afazeres que se multiplicam ou as preocupações que pontualmente
irrompem (o não saber como estará a funcionar o aeroporto de Bruxelas; a aluna
que deixou cair o telemóvel cheio de lantejoulas cor-de-rosa, parcela da alma
de qualquer dos meus estudantes, entre a carruagem e o cais – e o brinco da
colega que, tentando ajudar, também foi direito àqueles abismos; a necessidade imperativa
de improvisar uma aula de direito e bioética que de um momento para o outro se
revelou absolutamente indispensável para evitar o naufrágio de um dos grupos de
trabalho; o espaço das malas que nunca parece chegar para tudo o que o grupo
foi colecionando ao longo destes breves dias) me perturbam esta atividade
paralela.
E
para tudo há a correspondente compensação: aos afazeres, sucessos; aos picos de
stress, inúmeros momentos de ruidosas gargalhadas; à ponderação sobre o que ando
a fazer, a tentativa de endireitar os aspetos que me parecem mais desarrumados.
Ora,
no que diz respeito a esta última coordenada, chego sempre à mesma conclusão: o
que interessa é seguir aquilo que se acha importante e ser-se fiel a si próprio
(o que por vezes custa horrivelmente). Mesmo se o que somos ou aquilo que
efetivamente pensamos não seja confortável para todos aqueles que à nossa roda
preferem deleitar-se numa certa preguiça entorpecedora.
Penso
nisto tendo presente um dos seminários a que assistimos nos plenários do exchange programme (não, não foi o sobre
as cervejas, embora esse também tenha sido interessante, sobretudo quando das
provas): um especialista belga dissertou sobre choques culturais e diferentes
formas de pensar em torno da mesma questão ou de agir perante o mesmo facto. O
propósito seria demonstrar que devemos conhecer bem as culturas que nos rodeiam
(e respetivos ordenamentos jurídicos), de molde a não esperarmos o impossível
ou agirmos desastradamente sem sequer dar por isso. No fundo, abandonar um
pouco a perspetiva de paternalismo ocidental e procurar fusões com os extremos.
Para o fazer, recorreu a uma série de exemplos que permitiam distinguir – com aparente facilidade – “ocidentais” de “asiáticos”.
O
bom do professor belga – homem culto e bonacheirão – esqueceu-se porém de uma particularidade
assaz importante: os “ocidentais” não são todos iguais. Mais: nem sequer os
europeus são todos iguais. Há pelo menos um povo que, qual irredutível aldeia
gaulesa, não consegue sempre pensar como o resto da europa culta, ocidental. Pois, nós!
E
isso refletiu-se óbvia e brutalmente no tal teste composto por exemplos alegadamente
muito esclarecedores.
Como?
Algumas
ilustrações.
Numa
das hipóteses perguntava-se “a que grupo pertence esta flor: A ou B?”. E
mostrava-se o desenho da dita e dois conjuntos de flores mais ou menos
semelhantes. Os profs portugueses acharam em uníssono que era “A”, os belgas
propenderam para “B”. Instantes depois ficamos a saber que todos os asiáticos que
se tinham submetido ao teste haviam votado “A” enquanto os ocidentais
preferiram em massa “B”.
Noutra
mostrava-se uma caixa de madeira em forma de canudo e dois objetos mais: um de
dimensões e forma idênticas à caixa se bem que de material e cor muito
diferentes, outro de dimensões e forma diversas (um pequeno monólito) mas do
mesmo material. Qual deles seria mais afim com a caixa? Os portugueses votaram
todos na segunda, os belgas ficaram-se pela primeira. Adivinhem o resultado da
sondagem? Pois, os asiáticos integraram todos a nossa equipa enquanto os
ocidentais se bandearam para a rival. As risadas começaram a irromper no
auditório de Bruges!
De
seguida foi a vez do “teste da fila”: os ingleses alinham-se todos e esperam perfilados, os chineses apinham-se e lutam para chegar a uma mesa. Esta informação
é vital para quem, por exemplo, organiza buffets.
Hummmm… e de que lado ficamos nós, portugueses? Os belgas não tiveram
dificuldade em enfileirar atrás dos britânicos...
O
tema do acesso às chefias também foi divertido. Alegadamente, no mundo “asiático”
o acesso direto ao topo é quase impossível: há sempre mil e quinhentos
patamares, subsecretários de segundos secretários e entraves de toda a espécie
para obstar a qualquer pretensão do género. Por assim ser, cada um aposta na
construção de redes de contactos. Quanto mais densas e complexas forem essas
redes, mais poder e influência se acumula. Entre os “ocidentais” – asseveravam os
autores do teste – nada disto sucedia. Antes pelo contrário: a via até aos órgãos
de chefia e direção estava desimpedida e era de livre acesso a qualquer interessado.
Pois… Portugal fica no coração do mundo ocidental, mas cá as coisas não se passam assim.
Lembrei-me então de certo dia ter lido uma entrevista do meu orientador na qual explicava que, devido a uma pluralidade de motivos, nós, geograficamente os mais ocidentais dos povos da Europa, não integramos o top dos “ocidentalizados” do velho continente. Orientalismos e Edward Said à parte, adotamos com frequência (e temos fortemente interiorizada) uma postura facilmente rotulável como “asiática”.
Lembrei-me então de certo dia ter lido uma entrevista do meu orientador na qual explicava que, devido a uma pluralidade de motivos, nós, geograficamente os mais ocidentais dos povos da Europa, não integramos o top dos “ocidentalizados” do velho continente. Orientalismos e Edward Said à parte, adotamos com frequência (e temos fortemente interiorizada) uma postura facilmente rotulável como “asiática”.
As
risadas já corriam francas entre os profs presentes no auditório.
E
tinha realmente graça: dois povos a um tempo tão próximos e tão apartados. E como apesar dessas diferenças se conseguem fazer exchange programmes bem sucedidos!
Pois,
mas estávamos no meio universitário, protegidos pela paliçada da academia.
Cá
fora, no campo económico e político, também haveria lugar a gargalhadas e
gracejos? Duvido muito. Não tem sido dada grande margem para folguedos.
Não
é que com isto queira desculpar o que quer que seja. Pronto, não fizemos porque por vezes encaramos a vida de um prisma
diferente! não pode ser desculpa para as nossas muitas falhas. No entanto,
a própria Europa – a outra, na qual por vezes parecemos ter entrada
condicionada, juntamente com uma série de países carimbados como “latinos” ou “católicos”
– deveria olhar-nos com o cuidado que reserva aos seus potenciais aliados asiáticos.
Com a atenção de um académico que, antes de procurar receitas à pressão
imitando (pensei mesmo em escrever “macaqueando”) aqueles casos que vozes
alheias ou menos informadas lhe dizem ser de sucesso, se esforça por
compreender o objeto de estudo. Compreendê-lo efetivamente e não com base na definição apresentada por uma
qualquer wikipédia bem cotada na praça.
Nem
que fosse apenas por isso (e foi muito mais do que isso), a ida a Bruges valeu
bem a pena! Só lamento que quem nos comanda não tenha possibilidade de seguir a
minha receita: uma saída de vez em quando é altamente salutar para percebermos
algo essencial – o nosso lugar no mundo depende muitíssimo de aceitarmos ser o
que somos e lutarmos por isso.
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