Etiópia e(m) Leiria
Tendo
acordado hoje com uma das minhas estremecidas dores de cabeça (maldita cabeça
que tão atreita a dores é! Pelo menos podia ser uma cabeça que gerasse ideias
milionárias, mas nem isso!...) pus rapidamente em prática o
plano-de-recuperação-rápida-do-que-for-possível-salvar-do-naufrágio-antes-que-a-enxaqueca-me-torne-absolutamente-disfuncional.
Ao contrário do título pomposo, a estratégia é de uma simplicidade quase
infantil: litros de café (quando se tem noção de que se aproxima o limite do
abuso de café, troque-se por coca-cola), pão seco – BEM seco! – e almogran. Se já morreu, o criador do almogran merece uma nuvem xl e tão fofa
quanto possível no céu, rodeada por um coro de serafins cantores! Se ainda for
vivo, não preciso de lhe desejar uma vida próspera e afortunada: tenho a
certeza de que os réditos do seu maravilhoso mas carérrimo medicamento lhe
garantem uma existência mais do que confortável. Trata-se porém de um daqueles
casos em que ninguém ousa regatear os tostões e que torna suportáveis os
recados que as médicas estagiárias do centro de saúde incluem nas minhas
receitas.
As
pessoas afortunadas (imagino eu; nunca me chegou nenhum às mãos, e honestamente
espero que tal nunca venha a acontecer pois tudo isso me parece bastante
pacóvio) recebem bilhetinhos amoráveis, onde almas deslumbradas escrevem
delicadamente Adorei conhecê-lo, Espero que nos voltemos a encontrar ou
mesmo um mais ousado Liga-me. A mim,
escrevinham: Não abuse!, ou Tomar com moderação. Já me fizeram
inclusive ir a uma consulta extra, não fosse eu um triste viciado em almogran. O resultado foi patético:
-
O senhor sente-se bem?
-
Sim, ótimo. Mas sem perceber a que se deve esta consulta.
-
Estive a rever o seu processo e fiquei baralhada. A única coisa que o senhor
pede – e pede ciclicamente – é almogran.
Nada mais.
-
Não sei qual é a estranheza? É bom sinal: preciso somente de almogran. Nada mais.
-
Só almogran? – pergunta em tom de
irónico desafio.
-
Só almogran – replico com
simplicidade.
-
Isso é um caso único.
-
Que quer que lhe diga? Ainda bem.
-
Bom, mas tenha mais moderação no consumo.
-
Eu tenho imenso cuidado. Para mais há duas agravantes. Por um lado, sou
bastante hipocondríaco; por outro, um bocado agarrado ao dinheiro. Assim sendo,
por que razão iria eu consumir abusivamente uma coisa tão cara e para a qual é
preciso receita… quando há tantas alternativas por aí, mais baratas e à mão?
Mas
tudo isto – euros a voar da carteira e desconfiança das clínicas novatas – se
torna insignificante perante os efeitos extraordinários daquela pequena pírula!
Ora,
como já referi, nestas ocasiões é fundamental regar abundantemente o organismo
com café. Mas a verdade é que não se pode tomar três cafés no mesmo sítio. Iria
parecer demasiado bizarro e – culpa minha, que falo com toda a gente; se fosse
um cliente que entra calado e sai mudo nada disto aconteceria – despertaria
questões. E quando se está com dor de cabeça a vontade de prestar explicações torna-se
bastante residual.
Portanto,
percorro os diferentes cafés das imediações sempre na mira da próxima bica. No
entanto, como sou um tipo esquisito com os cheiros – e como todos os odores se
tornam ainda mais intensos durante estes períodos de crise – busco sempre
sítios tão escanhoados e ventilados quanto possível. Às vezes tenho sorte,
noutras não. Hoje, quando me achava no encalce da segunda bica, pensei em
passar pelo café da russa. A senhora
é simpática e em regra o cheiro a
comida fria e a fritos só ataca depois do almoço.
Tentei a minha sorte. Falhei. Não se pode
ganhar sempre.
Mal
abri a porta, uma onda repulsiva de cheiro a comida requentada levou-me com
ela. Havia duas possibilidades. Suster a respiração e nadar rapidamente entre
aquelas vagas malcheirosas até ao café, bebê-lo de um trago e voltar a terra
segura ou buscar novo local para a segunda bica. Eu estava porém demasiado
desesperado pela próxima dose e disposto
a sacrificar temporariamente o meu olfato. Sabia que o próximo fornecedor ficava
demasiado distante e que o tempo apertava. Ousei o mergulho e rumei até ao
balcão. Entretanto, enquanto a russa me
preparava a bica e, depois, enquanto a tomava, tive oportunidade de ver quem me
acompanhava no estabelecimento. Três velhotas tomavam o pequeno-almoço dispostas
em mesas muito separadas umas das outras e falavam do passado aos gritos entre
si. Quando cheguei, o tema eram crianças expostas, e as senhoras misturavam
extraordinariamente factos históricos com a sua imaginação.
-
A minha mãe ainda se lembrava – dizia uma, enquanto mastigava a sua torrada –
de as mulheres deixarem os filhos às portas das outras.
-
Mas para quê? – questionava-se outra, sem dúvida a ingénua do grupo – Para
tomarem conta deles enquanto trabalhavam ou iam às compras?
-
Ora, abandonavam-nos!
-
Assim, à porta?
-
Pois, deixavam lá a alcofa e tocavam a campainha. Entretanto, raspavam-se.
Mas
a ingénua não era burra de todo:
-
Mas nesse tempo já havia campainhas?
Breve
silêncio antes da réplica:
-
Era um sino. Todas as casas tinham um sino.
A
terceira, que até então se mantivera em silêncio bebendo um galão, aproveitou a
oportunidade:
- A
minha mãe lembrava-se era de haver uma forca na praça, na Rodrigues Lobo. Era
ela muito miúda.
-
A sério? – pasmava a ingénua –Ai, a tua mãe devia ser muito velha.
-
Ela nesse tempo era uma catraia. Foi no tempo do rei Carlos.
-
Ai, filha, disso de reis não sei nada.
-
Foi o último rei. A minha mãe ainda foi ao castelo no tempo dele.
-
Ah, não me digas que ele vivia no castelo!
-
Não, mulher, veio cá em visita!
Foi
então a vez da perita nos expostos falar da sua experiência:
-
Eu fui ao castelo quando veio o Craveiro Lopes. Foi tudo lindo, lindo, lindo!
-
Ai, tens tanta sorte!
-
Também fui noutra ocasião… quando veio cá o da Etiópia…
-
O da Etiópia? – espantaram-se as demais.
-
Sim, se era rei ou presidente já não me lembro. Só me lembro que era da
Etiópia!
- Se
foi há muito tempo devia ser rei…
-
Mas eu também não sou assim tão velha!
-
O que eu gostava era de saber onde é isso da Etiópia!
[Eu
também gostava de ter ouvido a resposta: mas nessa altura o café estava bebido
e pago e a minha enxaqueca martelava-me demasiado os neurónios].
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