Wednesday, February 10, 2016

Etiópia e(m) Leiria


Tendo acordado hoje com uma das minhas estremecidas dores de cabeça (maldita cabeça que tão atreita a dores é! Pelo menos podia ser uma cabeça que gerasse ideias milionárias, mas nem isso!...) pus rapidamente em prática o plano-de-recuperação-rápida-do-que-for-possível-salvar-do-naufrágio-antes-que-a-enxaqueca-me-torne-absolutamente-disfuncional. Ao contrário do título pomposo, a estratégia é de uma simplicidade quase infantil: litros de café (quando se tem noção de que se aproxima o limite do abuso de café, troque-se por coca-cola), pão seco – BEM seco! – e almogran. Se já morreu, o criador do almogran merece uma nuvem xl e tão fofa quanto possível no céu, rodeada por um coro de serafins cantores! Se ainda for vivo, não preciso de lhe desejar uma vida próspera e afortunada: tenho a certeza de que os réditos do seu maravilhoso mas carérrimo medicamento lhe garantem uma existência mais do que confortável. Trata-se porém de um daqueles casos em que ninguém ousa regatear os tostões e que torna suportáveis os recados que as médicas estagiárias do centro de saúde incluem nas minhas receitas.

As pessoas afortunadas (imagino eu; nunca me chegou nenhum às mãos, e honestamente espero que tal nunca venha a acontecer pois tudo isso me parece bastante pacóvio) recebem bilhetinhos amoráveis, onde almas deslumbradas escrevem delicadamente Adorei conhecê-lo, Espero que nos voltemos a encontrar ou mesmo um mais ousado Liga-me. A mim, escrevinham: Não abuse!, ou Tomar com moderação. Já me fizeram inclusive ir a uma consulta extra, não fosse eu um triste viciado em almogran. O resultado foi patético:
- O senhor sente-se bem?
- Sim, ótimo. Mas sem perceber a que se deve esta consulta.
- Estive a rever o seu processo e fiquei baralhada. A única coisa que o senhor pede – e pede ciclicamente – é almogran. Nada mais.
- Não sei qual é a estranheza? É bom sinal: preciso somente de almogran. Nada mais.
- Só almogran? – pergunta em tom de irónico desafio.
- Só almogran – replico com simplicidade.
- Isso é um caso único.
- Que quer que lhe diga? Ainda bem.
- Bom, mas tenha mais moderação no consumo.
- Eu tenho imenso cuidado. Para mais há duas agravantes. Por um lado, sou bastante hipocondríaco; por outro, um bocado agarrado ao dinheiro. Assim sendo, por que razão iria eu consumir abusivamente uma coisa tão cara e para a qual é preciso receita… quando há tantas alternativas por aí, mais baratas e à mão?
Mas tudo isto – euros a voar da carteira e desconfiança das clínicas novatas – se torna insignificante perante os efeitos extraordinários daquela pequena pírula!
Ora, como já referi, nestas ocasiões é fundamental regar abundantemente o organismo com café. Mas a verdade é que não se pode tomar três cafés no mesmo sítio. Iria parecer demasiado bizarro e – culpa minha, que falo com toda a gente; se fosse um cliente que entra calado e sai mudo nada disto aconteceria – despertaria questões. E quando se está com dor de cabeça a vontade de prestar explicações torna-se bastante residual.
 
Portanto, percorro os diferentes cafés das imediações sempre na mira da próxima bica. No entanto, como sou um tipo esquisito com os cheiros – e como todos os odores se tornam ainda mais intensos durante estes períodos de crise – busco sempre sítios tão escanhoados e ventilados quanto possível. Às vezes tenho sorte, noutras não. Hoje, quando me achava no encalce da segunda bica, pensei em passar pelo café da russa. A senhora é simpática e em regra o cheiro a comida fria e a fritos só ataca depois do almoço.
 
 Tentei a minha sorte. Falhei. Não se pode ganhar sempre.

Mal abri a porta, uma onda repulsiva de cheiro a comida requentada levou-me com ela. Havia duas possibilidades. Suster a respiração e nadar rapidamente entre aquelas vagas malcheirosas até ao café, bebê-lo de um trago e voltar a terra segura ou buscar novo local para a segunda bica. Eu estava porém demasiado desesperado pela próxima dose e disposto a sacrificar temporariamente o meu olfato. Sabia que o próximo fornecedor ficava demasiado distante e que o tempo apertava. Ousei o mergulho e rumei até ao balcão. Entretanto, enquanto a russa me preparava a bica e, depois, enquanto a tomava, tive oportunidade de ver quem me acompanhava no estabelecimento. Três velhotas tomavam o pequeno-almoço dispostas em mesas muito separadas umas das outras e falavam do passado aos gritos entre si. Quando cheguei, o tema eram crianças expostas, e as senhoras misturavam extraordinariamente factos históricos com a sua imaginação.

- A minha mãe ainda se lembrava – dizia uma, enquanto mastigava a sua torrada – de as mulheres deixarem os filhos às portas das outras.
- Mas para quê? – questionava-se outra, sem dúvida a ingénua do grupo – Para tomarem conta deles enquanto trabalhavam ou iam às compras?
- Ora, abandonavam-nos!
- Assim, à porta?
- Pois, deixavam lá a alcofa e tocavam a campainha. Entretanto, raspavam-se.
Mas a ingénua não era burra de todo:
- Mas nesse tempo já havia campainhas?
Breve silêncio antes da réplica:
- Era um sino. Todas as casas tinham um sino.
A terceira, que até então se mantivera em silêncio bebendo um galão, aproveitou a oportunidade:
- A minha mãe lembrava-se era de haver uma forca na praça, na Rodrigues Lobo. Era ela muito miúda.
- A sério? – pasmava a ingénua –Ai, a tua mãe devia ser muito velha.
- Ela nesse tempo era uma catraia. Foi no tempo do rei Carlos.
- Ai, filha, disso de reis não sei nada.
- Foi o último rei. A minha mãe ainda foi ao castelo no tempo dele.
- Ah, não me digas que ele vivia no castelo!
- Não, mulher, veio cá em visita!
Foi então a vez da perita nos expostos falar da sua experiência:
- Eu fui ao castelo quando veio o Craveiro Lopes. Foi tudo lindo, lindo, lindo!
- Ai, tens tanta sorte!
- Também fui noutra ocasião… quando veio cá o da Etiópia…
- O da Etiópia? – espantaram-se as demais.
- Sim, se era rei ou presidente já não me lembro. Só me lembro que era da Etiópia!
- Se foi há muito tempo devia ser rei…
- Mas eu também não sou assim tão velha!
- O que eu gostava era de saber onde é isso da Etiópia!

[Eu também gostava de ter ouvido a resposta: mas nessa altura o café estava bebido e pago e a minha enxaqueca martelava-me demasiado os neurónios].

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