Wednesday, October 21, 2015

Hostel na Beira


A casa que durante gerações serviu de base a uma das velhas famílias da Beira – uma desse punhado de linhagens que com as suas qualidades e loucuras, banalidades e peculiaridades, grandezas e misérias vem marcando a região – foi recentemente transformada numa taberna típica e num hostel. Por novos proprietários amáveis, que entretanto a compraram e verdadeiramente a estremecem. Abandonada e vandalizada durante décadas, descaracterizada e arruinada pelo betão dos edifícios próximos, está agora muito melhor do que há 10, 20, 50 anos.


A família das várias consoantes dobradas já desaparecera há muito daqueles espaços e movimenta-se hoje noutras geografias. Viva e cheia de vontade de continuar a fazer coisas.


As salas onde outrora se decidiram encarniçadas eleições, onde gerações de juristas trabalharam e desde onde (sejamos francos) exploraram os seus conterrâneos, onde foram dadas festas que ficaram na memória coletiva, de onde Pedro PS partiu para a viagem em que descobriria a quina brasiliense, onde Angelino terá exibido com orgulho a página em que Júlio Verne o imortalizou, onde um velho médico praticou medicina durante uma vida, são agora um open space no qual os arrebicados móveis de pau-preto cederam espaço a mesas e cadeiras de linhas simples e modernas e os espelhos de Veneza de moldura dourada não têm lugar nas paredes de um branco imaculado. As porcelanas foram substituídas por louça funcional e as pratas – as velhas pratas afamadas e desaparecidas que deram mesmo origem a um processo judicial no distante século XIX – já não refletem os visitantes e as toilettes das senhoras.


As reações divergem, como sempre acontece em tempos de mudança. Uns acham que a obra ficou bem; outros taxam a transformação de desgraça; outros ainda são-lhe indiferentes (foi tudo há tanto tempo…).


O descendente da família (mas já não herdeiro da casa) acompanha o processo com alguma curiosidade. Ainda há móveis velhos e arrebicados, ainda pode beber champanhe nas taças por onde o beberam os tais avoengos das consoantes dobradas. A velha árvore persiste florescente. Mas não pode também deixar de imaginar – ao mirá-lo na foto encarando o mundo com ar de desprezo por detrás das barbas bastas (ele que Avelino Cunhal, que o detestava, dizia ter “um à-vontade de dono e senhor da Misericórida, da praça, da vila, do sol”) – no que diria S.A.M. ao ver os seus salões assim convertidos. Ou como Maria Carlota Joaquina reagiria perante estranhos pisando as carpetes. Mandariam eles os capangas sovar os intrusos? É provável. E rir-se-iam certamente dos desgraçados, ainda por cima.


Mas essa seria apenas uma primeira reação, intempestiva. Depois, juntamente com os demais membros da família das várias consoantes dobradas, olhariam para a casa que já não é nossa e já não é a nossa, divertidos e interessados, e concluiriam que uma linhagem é bem mais do que um monte de pedras. E que não há hostel nem edifício nenhum no mundo que valha dois LL, dois NN e dois TT!

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