Hostel na Beira
A casa que durante gerações serviu de
base a uma das velhas famílias da Beira – uma desse punhado de linhagens que
com as suas qualidades e loucuras, banalidades e peculiaridades, grandezas e
misérias vem marcando a região – foi recentemente transformada numa taberna
típica e num hostel.
Por novos proprietários amáveis, que entretanto a compraram e verdadeiramente a
estremecem. Abandonada e vandalizada durante décadas, descaracterizada e
arruinada pelo betão dos edifícios próximos, está agora muito melhor do que há
10, 20, 50 anos.
A família das várias consoantes dobradas
já desaparecera há muito daqueles espaços e movimenta-se hoje noutras
geografias. Viva e cheia de vontade de continuar a fazer coisas.
As salas onde outrora se decidiram
encarniçadas eleições, onde gerações de juristas trabalharam e desde onde
(sejamos francos) exploraram os seus conterrâneos, onde foram dadas festas que
ficaram na memória coletiva, de onde Pedro PS partiu para a viagem em que
descobriria a quina brasiliense, onde Angelino terá exibido com orgulho a página em que
Júlio Verne o imortalizou, onde um velho médico praticou medicina durante uma
vida, são agora um open space
no qual os arrebicados móveis de pau-preto cederam espaço a mesas e cadeiras de
linhas simples e modernas e os espelhos de Veneza de moldura dourada não têm
lugar nas paredes de um branco imaculado. As porcelanas foram substituídas por
louça funcional e as pratas – as velhas pratas afamadas e desaparecidas que
deram mesmo origem a um processo judicial no distante século XIX – já não refletem os visitantes e as toilettes das
senhoras.
As reações divergem, como sempre acontece
em tempos de mudança. Uns acham que a obra ficou bem; outros taxam a
transformação de desgraça; outros ainda são-lhe indiferentes (foi tudo há tanto
tempo…).
O descendente da família (mas já não herdeiro da
casa) acompanha o processo com alguma curiosidade. Ainda há móveis velhos
e arrebicados, ainda pode beber champanhe nas taças por onde o beberam os tais
avoengos das consoantes dobradas. A velha árvore persiste florescente. Mas não pode também deixar de imaginar – ao
mirá-lo na foto encarando o mundo com ar de desprezo por detrás das barbas bastas
(ele que Avelino Cunhal, que o detestava, dizia ter “um à-vontade de dono e
senhor da Misericórida, da praça, da vila, do sol”) – no que diria S.A.M. ao
ver os seus salões assim convertidos. Ou como Maria Carlota Joaquina reagiria
perante estranhos pisando as carpetes. Mandariam eles os capangas sovar os
intrusos? É provável. E rir-se-iam certamente dos desgraçados, ainda por cima.
Mas essa seria apenas uma primeira
reação, intempestiva. Depois, juntamente com os demais membros da família das várias
consoantes dobradas, olhariam para a casa que já não é nossa e já não é a nossa,
divertidos e interessados, e concluiriam que uma linhagem é bem mais do que um
monte de pedras. E que não há hostel nem
edifício nenhum no mundo que valha dois LL, dois NN e dois TT!
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