Beto agramatical
Em
todas as faculdades dispersas pelas universidades desse mundo fora os
doutorandos vão criando as suas próprias rotinas e dinâmicas. Estas dependem de
uma multidão de fatores: da escola em questão, dos espaços de que dispõe, dos
serviços que alberga, do bom ou mau entendimento entre a comunidade académica
que a habita ou visita com maior ou menor frequência, das vizinhanças que tem…
entre uma miríade de outros mais.
Na
minha Faculdade, que conta com instalações confortáveis mas não imensas, os
doutorandos usufruem de uma sala própria e cheia de luz, aonde nos repartimos
sem tensões pelas mesas que aí se encontram. Felizmente, há em regra mais mesas
disponíveis do que doutorandos a precisar delas, creio que pela simples razão
de que não as buscamos todos nos mesmos dias e horários. Eu, quando lá estou –
em regra nos últimos dias da semana, descansado e satisfeito por ter já
garantido todas as aulas leirienses – sento-me sempre no mesmo sítio (“que
enooooorme surpresa”, pensam cinicamente os que me conhecem). Um pouco à
frente, costumo encontrar outro frequentador fiel, o Francisco. Não raro, nos
fins de tarde, cruzo-me com a Núbia. E vários outros vão aparecendo.
Ora,
se por um lado estamos muito bem servidos em termos de local para trabalhar,
pelo contrário o nosso bar/cantina (que na verdade nem é bem nosso, mas da
residência que enfrenta o edifício da Faculdade) apenas pode ser classificado
como razoável. As funcionárias são simpáticas, o ambiente é bom, a comida
satisfatória (embora fique sempre com a ideia de que o prato mais apreciado
continuam a ser tostas mistas), o espaço ok – mas apenas isso. Um pouco acima,
temos outro sítio onde se servem refeições, anichado no casarão que tendo
outrora albergado padres da Companhia e seus alunos agora dá guarida aos
colegas economistas. Esse, porém, é francamente pior – acanhado, cheirando a
fritos, pouco confortável – do que a sala ampla e branca onde trincamos as
ditas tostas e bebemos café.
Tais
contingências levam a que se criem regimes alternativos para garantir os
almoços. É que viver de tostas pode cansar até os estômagos mais estóicos e há
sempre o risco de não se apreciar especialmente os pratos quentes servidos em
determinado dia. Ou, por outro lado, o tempo para mastigar qualquer coisa pode
ser escasso. Ou ser-se um dos adeptos do “traga a sua comida de casa num tupperware”.
Ou ainda preferir-se aproveitar a pausa para comer uma sandocha no exterior,
junto ao relvado, em vez de ficar fechado a ver as árvores para lá das
vidraças.
Eu
sou dos que votam nas sandochas peripatéticas. Isto é, gosto de dar uma volta
marchando pelo campus enquanto as vou
comendo e pensando na vida (e na tese: uma e outra misturam-se de forma por
vezes um pouco assustadora). Não sou caso único: somos quase uma subcomunidade.
Findo o almoço ambulante, é tempo de (mais) uma cafézada – agora já no bar.
Estes
almoços andantes, para além de ajudarem a arejar, revelam-se por vezes
estranhamente instrutivos. Querem um exemplo? Ainda ontem descobri como sou
rotulado com base numa estanha classificação da população feita a partir da
forma como se tratam os progenitores. Devo desde já avisar que obtive um
resultado péssimo – na verdade, desci mesmo até à pior pontuação – de acordo
com os ditos parâmetros, gritados alto por uma estudante da faculdade vizinha.
Explicava
aquela alma clarividente a um auditório que apesar de tudo a seguia com alguma
atenção:
-
Existem três tipos de pessoas.
(“Só??”,
pensei eu, enquanto mastigava o meu patê.)
-
Em primeiro lugar, as normais. São as
que tratam os pais por tu.
(“Boa,
não sou normal. Isso até nem é mau!”, ponderei.)
-
Depois, as afetadas. Estas tratam os
pais por você.
(“Também
não jogo nesta equipa. Havia de ser bonito se eu me voltasse para o meu Pai e
lhe dissesse Você pode-me ir buscar à
estação?. Só não apanhava um estalo porque, enfim, os anos já contam para
alguma coisa”.)
-
Por fim, há aqueles insuportáveis betos
agramaticais! São aqueles que não sabem sequer português nem conseguem conjugar
nada e tratam os pais por “Pai” e “Mãe”.
E
começando a mimar:
-
Assim do género: Oh Pai, o Pai já comprou
o livro? Oh Mãe, a Mãe pode dizer-me as horas?
(“Ora
bolas”, considerei divertido, “eu sou um beto
agramatical”).
Como
reagir a semelhante informação? Cheguei aos 37 convencido de que até tinha
algum talento para falar, escrever, pensar, essas coisas que a gente dita agramatical em regra não domina. Mas
não, tudo foram presunções vãs da minha parte… O que eu sou – e muita gente
minha conhecida que também cai neste grupelho de almas perdidas – é um tipo que
nem sequer consegue falar corretamente com os próprios pais. Uma tristeza!
No
entanto, a questão não ficou por aí. Retornando à Faculdade, contei a novidade
a uns colegas com quem ia reunir. O que achavam eles de tão notável tabela? A
que escalão pertenciam? A resposta não foi fácil de obter. Nunca é, entre
juristas. Em regra, os escalões em que o resto do mundo se encaixa não nos bastam.
Adoramos criar subgrupos; divertimo-nos a descobrir exceções a regras. Foi o
que aconteceu quando a nossa colega disse:
-
Eu nem sei onde fico. Por um lado, trato a minha mãe por tu. Por outro, o meu
pai por pai. O que serei eu?
-
Meia beta agramatical – repliquei eu.
-
Ou normalobeta! – sugeriu outro.
-
E porque não betonormal? Como
haveremos de decidir qual dos dois vem primeiro?
Mas
não tivemos coragem – nem tempo ou paciência, diga-se – para procurar a sábia
classificadora, na esperança de que ela nos desse resposta a tão grave dilema.
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