Tuesday, July 28, 2015

Camões na camisola

Instantâneos no bar da ESTG:
- D. Libânia[1], tire-me já um cafezinho que estou a morrer de sono e vou ter exame daqui a 10 minutos.
- Espera, filho. Não vês que está aqui o professor (eu) e que chegou primeiro do que tu?
O rapaz lá se predispôs a esperar, arvorando a clássica expressão de sou-uma-vítima-incompreendida-neste-sistema-em-que-os-professores-não-me-cedem-passagem-mesmo-que-eu-esteja-mesmo-necessitado-de-um-café-e-atrasado – e tudo parecia decorrer normalmente quando de repente solta um:
- Ai, c******, pisaste-me!
Aparentemente, outro estudante retardatário desejoso de cafeína tinha-se lançado com demasiado ímpeto sobre o balcão e trucidado o pé do ensonado.
D. Libânia cortou cerce a contestação:
- Filho! Que modos são esses!?
E olhando para mim:
- Ainda por cima à frente do professor!
Insatisfeita, prosseguiu:
- E para mais com um uma camisola com o Camões! Não tens vergonha??!
O rapaz oscilava entre e envergonhado devido ao ralhete (D. Libânia é uma senhora que impõe respeito) e o incrédulo pela referência à ilustração da t-shirt:
- Oh D. Libânia, este não é o Camões!
- Ai não, não é! Julgas que eu sou burra? Ou cega?
- Não é, D. Libânia, juro! É o António Variações! A sério!
Mas D. Libânia não se dava facilmente por vencida.
- É sim senhor o Camões, e fica sabendo que o Camões nunca dizia asneiras! Era um rapaz muito educado!
- Ora, como é que a senhora sabe?
- Julgas que sou ignorante por estar aqui no bar a servir cafés? Ele era lá da corte e namorou com as damas e as princesas.
E virando-se para mim:
- Não é verdade, professor?
Eu estava parvo com a argumentação e com o raciocínio da senhora, mas lá consegui responder:
- Sim, é verdade. Mas olhe que o Camões também era um soldado, e os soldados sempre usaram uma linguagem dura.
- Ora, professor, isso são os soldados de agora. O Camões era fino e fazia aquelas poesias todas bonitas, aposto que não dizia asneiras.
O rapaz porém não se dava por vencido:
- Até pode ser, mas este não é o Camões.
E D. Libânia persistia:
- Filho, que teimoso! Já te disse que é.
- É o Variações!
- Mas quem é que é esse?
-É um cantor superconhecido, D. Libânia! Aposto que a senhora conhece algumas músicas dele.
E começa a trautear alguns dos temas mais conhecidos do António Variações. Apesar da sua notória falta de jeito (ainda bem que não estuda canto ou qualquer coisa do género, mas uma engenharia!), D. Libânia lá reconheceu.
- Ah, e esse chamava-se Variações? Bom, não sabia. E porque é que era tão parecido com o Camões?
- Não era nada parecido: era até bem diferente.
- Filho, tornas a dar-me razão. Se não eram parecidos, não pode haver confusões. O homem da camisola é o Camões.
- Então não vê que não é. Veja lá, veja bem! (e esticava a t-shirt à frente da senhora). Olhe, está a ver que ele tem os dois olhos bons? O Camões era cego!
- Mas não foi sempre! Foi numa batalha que ele perdeu o olho. Não foi professor? (ao que anuí). E depois saltou da batalha para o mar e foi a nadar com os Lusíadas na mão para não se molharem e nadou dias e dias até chegar a uma terra qualquer lá na Índia.
E voltou à carga:
- Não foi, professor?
Eu lá tentei pôr água na fervura e gerir as coisas sem parecer demasiado professoral:
- Hummm, bem, enfim, sim e não. O Camões viveu em Goa, e talvez até na China, em Macau… Não se tem bem a certeza, mas há lá umas pedras que até se chamam Gruta de Camões e é lenda que ele aí passou algum tempo. Mas foi tudo há muito tempo, é difícil de provar…
O aluno – que entretanto já bebera o café e despertara de vez – continuava a ripostar enquanto puxava pela t-shirt:
- E veja estas flores à volta do Variações. Se fosse o Camões para que é que seriam as flores?
O argumento não colheu e D. Libânia replicou lesta:
- Ora, é por causa de ele já ter morrido. São flores para os mortos.
Ainda que, olhando mais detidamente para a cabeça de Variações/Camões, admitisse:
- Bom, filho, mas também é verdade que ele não tem aquela espécie de coroa de ramos que o Camões usava.
E perguntou, como que a testar a hipótese:
- Esse Variações também fazia poesias ou era só cantor?
- Cantava e era cabeleireiro.
- Filho, que disparate! Só se fosse barbeiro.
O aluno que pisara o interlocutor de D. Libânia riu-se e acrescentou:
- Era cabeleireiro era, D. Libânia. Ele era assim meio “florzinha”.
Foi a gota de água final:
- Filhos, chega. Estão a fazer pouco de mim e já estou farta! Ora, que ideia! Qual Variações, qual nada! Esse é mas é o Camões, ninguém mo tira da ideia! E ele de florzinha não tinha mesmo nada: não havia dama lá do palácio que lhe resistisse! Espero que não digam tantos disparates no exame! Vamos, toca a andar!
E assim aconteceu.




[1] Nome falso.




[1] Nome falso.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home