Sunday, September 14, 2014

Pipocas em “Os Maias”

Ontem fui ver a mais recente adaptação de “Os Maias” – ou seja, o filme de João Botelho que estreou há um par de dias e anda nas bocas do mundo. Ao contrário do que esperava, a sala estava cheia e as expetativas eram altas. Senti, pelo menos entre aqueles que ali se encontravam, vontade em querer gostar da nova fita, uma predisposição para aplaudir o esforço do realizador. Partia-se desde logo do princípio – generosamente e com bonomia – de que Botelho se esforçara. E isso justificava que se fechassem os olhos a dois ou três pecadilhos de adaptação do texto e da trama, à meia dúzia de inevitáveis erros de interpretação e a qualquer deslize de conceção. Louvavam-se de antemão os cuidados que se dizia terem sido tomados: a fidelidade ao texto original, a opção sensata em não querer falar de tudo, o recurso inteligente a evidentes cenários de papelão de forma a suprir a incapacidade de reproduzir cenários de época convincentes – sobretudo no que diz respeito aos exteriores.
Semelhante generosidade e tolerância é coisa rara entre nós. João Botelho e a sua equipa deviam tê-la sabido aproveitar. A meu ver porém não o conseguiram fazer.
Se me perguntarem Gostaste do filme?, terei de responder honestamente: Pouco, muito pouco.
E como retorquir à questão que inevitavelmente se segue: porquê? Não me digas que ele deu cabo do livro!?
Na verdade, não creio que Botelho & C.a o tenham feito: aplaudo mesmo o seu esforço em tentar respeitar o original e não macular o brilho do texto e do espírito de Eça. Feliz ou infelizmente, o busílis não se encontra aí.
Exporei três dos vários motivos que me fizeram torcer o nariz.
Por um lado, os cenários. Eu sei que sou muito escrupuloso nesses domínios e por vezes um tanto obsessivo nos pormenores. No entanto, não só creio que se trata de matéria essencial num filme deste género e na adaptação de uma obra em que os ambientes e os objetos têm assumidamente enorme importância, mas também esperava um resultado pelo menos aproximado das excelentes recriações que se fazem noutros países (penso nomeadamente nas produções inglesas). E não adiante recorrer uma vez mais ao estafado argumento da inexistência de verba. Não. O que critico pouco tem a ver com escassez de financiamento: prende-se sobretudo com negligência e a com a ignorância que com ela anda muitas vezes emparelhada. No que diz respeito aos exteriores, admito que a solução aos cenários de quase western de meados do século passado me pareceu bastante feliz. Lamento apenas que o desenhador, ao idealizar o Ramalhete, não tenha reproduzido o que eu considero ser relativamente evidente: uma “edificação do reinado da senhora D. Maria I” que “com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas” é algo bem diverso de uma casa burguesa do centro histórico de Sesimbra. Julgo que um par de conversas com gente que tenha umas luzes sobre o assunto e, sobretudo, uma manhã a calcorrear Lisboa e uma tarde a folhear álbuns da época teriam operado maravilhas. E não implicariam grandes despesas para além de uma sandocha digerida num almoço rápido, duas ou três bicas que se oferecessem aos consultados e das solas das sapatilhas. No que toca aos interiores, sou menos transigente. Há falhas que creio serem dificilmente perdoáveis. Para além da pobreza horrivelmente confrangedora de boa parte do mobiliário escolhido e mesmo da desadequação cronológica de algumas peças, custou-se ver (logo no início) o retrato de D. Pedro em casa de Caetano da Maia (muito adequado ao discurso anti-liberal de anti-maçónico do ancião) e mais tarde o de D. Miguel na de Afonso. Pode-se dizer que são pormenores – mas a verdade é que muito frequentemente são os detalhes que determinam o sucesso ou malogro de uma empreitada. Também achei extraordinário o facto de na quinta dos Maias em Benfica se usar um serviço de jantar idêntico ao do casamento dos meus Pais. Foi interessante assistir à discussão entre Pedro e Afonso em volta de tais pratos. E gostaria sinceramente de saber o que achariam os Maia ao virar a baixela e encontrar o símbolo da conimbricense SP… que surgiu apenas nas primeiras décadas do século XX. Foi também curioso presenciar as cenas de Carlos a tomar chá com Maria Eduarda (já agora: srª D. Maria Eduarda, nunca lhe ensinaram que quando se bebe chá sentada num canapé se segura a chávena e o pires respetivo? Depois queixe-se caso se queime ou pingue o vestido) usando chávenas semelhantes às dos tempos dos casamentos dos meus Avós. O que acrescentar atendendo a que a ação se passa umas gerações antes (“Os Maias” correspondem grosso modo à época dos bisavós dos meus Avós)? No que diz respeito ao Ramalhete, não vou sequer comentar o retrato da sogra de Afonso … nem quaisquer outros retratos, na verdade. A Toca, cujo recheio anárquico e por vezes incompreensível mas opulento impressionava, parece uma quinta de segunda em que se espalharam umas peles de leopardo para tentar dar um toque de exotismo…mas que lembram apenas os souvenirs de um tio africanista que tenha andado pelos sertões de Angola nos anos do Estado Novo. A Vila Balzac e o quarto do Ega, que escandalizava e intrigava os amigos, é uma triste sucessão de tristes divisões. E por todo o lado domina uma incompreensível chinoiserie que se terá certamente devido aos gostos do encenador. Os que me conhecem sabem que eu até gosto efetivamente de bricabraque asiático. Em paralelo eu sei que na época, tal como hoje, as casas portuguesas têm geralmente a sua quota de peças vindas do oriente. Mas ali exagerou-se. É interessante o velho Caetano sentar-se numa cadeira de Macau, são acertados o contador e a mesinha indo-portuguesa na sala do Ramalhete, mas, depois, tantas outras chinesices… eu, que nem achei feias algumas delas, não consigo compreender tal avalanche oriental!
Por outro lado, a sequência do próprio filme e os personagens que por lá passam. Eu sei que há uma versão mais longa e que ontem apenas assistimos à de duas horas, Mas julgo, por exemplo, que poucos terão percebido quem era o Eusebiozinho, a que título por lá aparecia, a razão de ser dos seus despeitos e defeitos.  E como compreender a alusão à morte do Reverendo Bonifácio quando praticamente não se fala nele? Uma pessoa mais distraída poderia mesmo achar que se tratava de um velho clérigo que andasse pelas salas de Santa Olávia. Quanto aos atores, eu nada percebo de representação… mas alguns pareceram-me francamente pouco convincentes. Eu sei que essa é uma das dificuldades associadas à adaptação de uma obra de culto como a que estamos a tratar. Todos e cada um dos leitores têm a sua ideia de como é cada um dos personagens e, mesmo que afetem tolerância, estão pouco disponíveis a abrir mão dela. Eu confesso que nunca concebi Maria Eduarda como a apresenta Maria Flor. Imaginava-a um pouco mais velha, um pouco mais redonda e sem dúvida mais misteriosamente sedutora e requintada. E que idealizo um Ega mais brilhante, isto apesar de considerar que Pedro Inês – que nome, Deus meu! – esteve bem em alguns momentos. Ou uma Gouvarinho mais tentadora. Ou um Alencar mais impressivo, um Craft mais fleumático, uma Rosicler mais irritante (sempre a achei uma miúda bastante enervante)… E admito, apesar de se tratar de um papel secundário, não ter gostado de ver Rita Blanco como D. Maria da Cunha. Eu acho pessoalmente uma certa graça à velha D. Maria da Cunha. Ainda há tantas D. Marias da Cunha por aí! Mas Rita Blanco faz constantemente de Rita Blanco. A mãe suburbana daquela horrível série “Conta-me como foi”, D. Inércia e D. Maria da Cunha são na verdade sempre a mesma pessoa. E a monotonia cansa.
Por fim, leio que João Botelho pretendeu adaptar “Os Maias” por considerar que continuam a espelhar a “imagem atual de um Portugal sem sentido”. Como justificação não é muito original, convenhamos – mas trata-se de um motivo válido. No entanto, eu sou um dos que acha que a leitura da obra de Eça é extremamente divertida. E é por isso que a ela recorro com frequência. Não por peneiras pseudointelectuais, não por vontade de vergastar a nação, mas apenas por sentir real prazer. Ora, em contrapartida o filme pareceu-me por vezes tão secaaaante. Tão mole, por vezes até descompassado. Confesso que de tempos a tempos me escaparam mesmo uns bocejos. Pior terá sucedido com a nossa vizinha de trás. A rapariga terá chegado a dormitar por uns momentos. Um despertar sobressaltado fê-la dar um encontrão descuidado no enorme pacote de pipocas que trouxera consigo. Resultado: uma forte chuvada de pipocas sobre o banco da frente num dos momentos tensos do filme.

A enxurrada imprevista durante uma das cenas que Botelho pretendeu ser mais profundamente impressivas teve um efeito diluidor e serviu para espanejar algum tédio. Enquanto sacudia as pipocas da t-shirt pensava: talvez isto – esta incoerência entre a passagem aborrecida e banal com que o realizador pretendeu prender a assembleia, o sono que o filme produziu na nossa vizinha, o seu acordar estremunhado e o caricato das pipocas esvoaçantes destruindo as pretensões do cineasta indígena – tivesse feito Eça sorrir e pensar: houve coisas que realmente não mudaram.

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