A IMPRESTABILIDADE DA UNIFORMIZAÇÃO
Há
meia dúzia de dias tive a oportunidade de participar (ativamente) numa aula
aberta para a qual foi convidado um jovem deputado pertencente à atual maioria
governamental. A sessão foi estimulante desde logo por ter permitido a
discussão sobre uma série de temas que atualmente preocupam todos – desde alunos
a professores – os que se debruçam minimamente sobre o estado do país e sobre o
enquadramento jurídico de vários dos principais obstáculos com que nos temos de
defrontar.
A
dado momento, o nosso visitante sublinhou com algum ênfase a velha tese de que nós portugueses nos devíamos inspirar mais
nos suecos; ser mais nórdicos, enfim.
Ora,
embora compreendendo o alcance das suas palavras – e mesmo (ainda que com algum
esforço) reconhecendo que as mesmas pretendem transmitir uma mensagem positiva –
é-me impossível perfilhar esta teoria ou qualquer outra sua semelhante. Cada
vez me convenço mais de que se durante os anos
da parvoeira (os teen) nos
esforçamos (ou pelo menos que a maioria de nós o faz) seriamente para nos
integrarmos num determinado grupo, ou tribo, ou estereótipo, também encetamos
um caminho inverso ao alcançar a idade adulta. Isto é: à ideia de integro-me porque sou parecido com eles sucede
(desejavelmente) a tese do integram-me
pelo que eu sou e por ter potenciais que lhes interessam/fascinam/desafiam/estimulam. Basicamente: começamos a ficar mais certos das nossas qualidades, a manejar
melhor os defeitos que nos infernizam e – literalmente (no sentido da bem
conhecida parábola) – a pôr os talentos a
render. Quando se passa a trintena, ninguém quer ter de se haver com
duplicados – é a velha e certeira máxima de a fotocópia ser sempre pior do que
o original. E tendo-se tantos originais à mão, quem se contentará com
reproduções mais ou menos eficazmente repintadas? Duvido seriamente de que
alguém com um pingo de amor-próprio e de curiosidade o faça. Não há pachorra
para gente uniforme e monocórdica e tudo o que desejamos é encontrar um punhado
de almas com que simultaneamente nos identifiquemos e que nos
desafiem/estimulem. Um equilíbrio difícil e uma meta ambiciosa, é certo – mas nesta
idade quem é que se compadece com projetos fáceis?
Tal
atitude acaba contudo por se tornar num pau de dois bicos, pelo que importa manejá-lo
cuidadosamente. Por um lado, temos de descobrir o que há de especial (ou extraordinário, no sentido literal da palavra) em cada um de nós e
trabalhar esse filão. Existem porém obstáculos a isto. Em primeiro lugar, dá
trabalho. Em segundo lugar, implica uma certa exposição e uma dose (calculável)
de risco. Se eu me afirmo por X e Y convém que quando for preciso consiga
demonstrar a verdade do que digo. Por outro lado, há que combater a tendência
que todos temos para a banalização. É que, se é certo que qualquer um está
ciente das suas múltiplas potencialidades, também o é que todos frequentemente
cedemos a não provocar ondas, a seguir o que existe e o que já está feito por
ser mais fácil (pelo menos num primeiro momento). Isto é, trocamos a adrenalina
de sermos nós mesmos pelo conforto aparente de uma existência semi-etérea em que
estamos presentes em tudo mas não participamos em nada. Um pouco como
figurantes, ou atores muito secundários. Gente que se vê com prazer,
para quem se sorri, mas por quem se passa com indiferença e depressa se
esquece. Por outro lado ainda, há que concatenar tudo isto. Lá por desejar pôr
os meus talentos a render, não me posso esquecer de que o faço integrado num
grupo e que o faço (ainda que de forma relativamente inconsciente) para ser integrado nesse grupo (e
integração, para mim, significa desempenhar um papel ativo). Se me perder numa
espiral de egotismo, duvido que tal me vá servir de muito. Finalmente, o último
aspeto a tomar em consideração é o sentimento de culpa ou mesmo de transgressão
que nos assalta quando cedemos à inércia, à uniformização ou a estímulos
que sabemos ser passageiros e infrutíferos e abandonamos a nossa especificidade
para nos juntarmos à carneirada. É a pena que comina os que sabem que podiam
ter feito mais ou de forma diferente mas que resolveram deixar-se ir. E custa
que se farta – para além de em regra (já todos passámos por situações do
género) ter tendência a revelar-se uma experiência bastante secante. Quem já não
sentiu na pele o ferrete da velha máxima britânica sometimes I pretend to be normal but it gets boring so I go back to be
me?
Foi
do que me lembrei ao ouvir o tal deputado – rapaz empenhado, certamente
acreditando nos seus conselhos de nos tornarmos um bocadinho mais nórdicos. Mas
o que se passa com cada um de nós não acontecerá também com o nosso país? Não
temos por vezes a tendência de o querermos converter numa versão xerox e latina de uma realidade nórdica
impossível (e atrevo-me a acrescentar, sem qualquer ofensa para os nossos
vizinhos das terras gélidas, indesejada)?
Este
não é naturalmente um problema exclusivo dos dias de hoje: recordo-me bem de ter
estudado as obsessões com a suiçificação de
Portugal nos alvores do século XX e da obsessão com o pobre do Numa Droz –
cujas doutrinas quiseram impor a camartelo entre nós. O resultado está à vista…
Se
calhar, o segredo passa por tentarmos encontrar para o país o equilíbrio que
procuramos para cada um de nós. O país já não é um adolescente tonto que não
sabe bem o que quer nem o que virá a ser. Tem uma identidade e uma maneira de
encarar a realidade. Não deveríamos partir – muito simplesmente, muito
calmamente, muito orgulhosamente – desse pressuposto?
Eu
prezo a possibilidade de ter o IKEA à
porta para aí comprar estantes billy;
gostei imensamente quando era miúdo de ler A
maravilhosa viagem de Nils Holgersson e os Emílios da Astrid Lindgren; espero visitar Estocolmo e ver os
fiordes; fico verdadeiramente satisfeito com a qualidade de vida na Dinamarca e como todos
os verdadeiros amantes de bacalhau tenho uma simpatia especial pelos mares
noruegueses. Mas não quero que as billy substituam
a minha velha e portuguesa secretária de torcidos, nem que o Nils pontapeie os seus congéneres
lusitanos. E porque diabo a terrina onde o Emílio meteu a cabeça não pode ser mandarim e ter vindo de Macau? E apesar
de apreciar o bacalhau do mar da
noruega tal não significa nem que vá tentar fazer cultura de bacalhaus nas
nossas águas nem que comece a desejar trocar o mar onde gosto tanto de
mergulhar por aqueles paraísos gelados!
Para
que precisará a europa – e o mundo – de um país onde se façam sucedâneos das billy, se tente infrutiferamente criar
bacalhaus em águas demasiado quentes e se tente imitar sem sucesso (e com uma
boa dose de ridículo) um estilo de vida característico de outra parte do
planeta?
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