Percepções distintas
Há já uns anos, um parente que muito prezo escreveu este post no seu blog de então (ainda hoje disponível por nestes espaços cibernéticos):
"Fechado... estou!
Num prédio que tantas histórias conta..., o apartamento que me acolhe dá-me todo o seu conforto, casa outrora repleta de jovens, apenas mobílias velhas descrevem agora uma lar de grande décadas... sinto me perdido no meio de heranças confusas, vejo quilos de livros que decoram o meu quarto seu peso leva um fardo de anos. Neste ar nostálgico sinto uma nostalgia de anos e anos... e, não quero eu senão afirmar-me! Viver, sobreviver, viver... Na minha cabeça instala-se uma confusão, fiz bem em regressar as origens dos meus tios, que tantos anos aqui viveram e estudaram e cresceram e se formaram!?... "
Na altura, o texto impressionou-me francamente, desde logo pela atitude perante o "legado" que rodeia o autor. Um "legado" que, voraz, se parece avolumar , que tudo parece consumir e, ajustando-se mal ao espaço sempre exíguo que lhe atribuem, deseja sempre mais. Um legado que, mais do que amparar, parece limitar os movimentos de quem escreve. Um legado que é tido como pesado, nostálgico e distante...
Como são diferentes as percepções do que nos rodeia e envolve - como são díspares os sentimentos que nutrimos perante o que nos forma! Esse "legado" sempre foi - ao invés de fria e castradora presença muda, ou inviolável fortaleza que com sobranceria mira quem passa - para mim, o mais suave dos colchões, a mais estimulante realidade. Esse "legado", na verdade, é, inegavelmente, uma importante influência na minha maneira de pensar, de encarar o mundo - afinal, na minha maneira de ser. Com as suas vantagens e inconvenientes (que, como tudo, também as tem), a certeza de que, sólido, estava ali, como coluna à qual me pudesse apoiar num momento de desânimo, aplanava receios, encurtava distâncias, afagava ego e alentos.
As "mobílias velhas" do texto em questão eram móveis sabedores e confortáveis, de semblante acolhedor pelo seu uso e pela sua história; os "quilos e quilos de livros" estavam ali - longe de assustarem - como muralha inexpugnável, um imenso manancial onde podia saciar a minha curiosidade, e como um motivo de orgulho (afortunado espaço esse, que tanto saber acumulava, e onde tanto saber luzia); as "heranças confusas" eram de uma límpida clareza - um continuum onde eu me enquadrava (e ainda enquadro) com toda a facilidade e prazer. E, por fim, a "nostalgia" que evola de todo o texto não existia (não existe) - sendo, antes, substituída pela vontade de fazer mais, confortavelmente ancorado naquele promontório. Por um constante "até aqui já se chegou, tentemos avançar um pouco mais".
Há cerca de dois anos, o vetusto rochedo tremeu. Todos sentimos a terra vibrar perigosamente sob os pés. Isso preocupou-me muito e - mais que tudo - assustou-me sobremaneira. Talvez como nada até então me tinha assustado. Descobri (não o sabia já? provavelmente sim), então, quanto o rochedo era importante para mim. Por muitas voltas que desse a qualquer mar ou oceano, a presença, serena e muda, daquela fortaleza e das aguas que a rodeavam contribuía grandemente para a minha serenidade. E a verdade é que sentia que, em todas as minhas "viagens", levava uma pedrinha daquele enorme rochedo na algibeira - como motivo de orgulho, desde logo, mas também como exemplo. Sem rochedo, não haveria mais pedrinhas para transportar na algibeira. Sem rochedo, a vida seria bem mais difícil, desconfortável e desagradável.
Os meses passaram, e a tempestade foi amainando. Descobri que, afinal, estava bem longe de ser o único a gostar - e a precisar - de continuar a levar pedrinhas do rochedo pelo mundo fora. Percebi que o rochedo, apesar dos redemoinhos, apesar das procelas violentas, não quebrou: aí está, altivo, pronto para enfrentar mais uma centúria. Investi longas horas para que (pelo menos sob a minha optica) o seu legado não se perdesse, para que a sua força não se transformasse em nostalgia, para não se tornasse numa massa informe de "móveis velhos", "quilos e quilos de livros" e papéis, que as heranças não se desvirtuassem tornando-se bizarramente "confusas", para que o sentimento colectivo não fosse dominado por qualquer tipo de saudosismo de "grandes décadas" já passadas.
Hoje, sentado na minha secretária, sentindo a proximidade de alguns dos "quilos e quilos" de livros, amparado por milhares de papéis - aos quais, espero, se vão juntar outros tantos da minha lavra - sabendo que sobreviveram os tais "móveis velhos", sinto que o meu esforço valeu a pena.
Olho para os Painéis, e penso - é altura de continuar.
Toca a pegar numa pedrinha, e vamos prosseguir caminho! O rochedo sobreviveu, está cá, e cá ficará, sempre, à minha espera!
12 Comments:
Caro Blogueiro: que tal um link para esse blog (cuja existência desconhecia) e que presumo ser de um nadador ilhéu...
Corrige-me se estou a delirar!
Ah e obrigado por este magnífico post!
Caro Blogueiro: que tal um link para esse blog (cuja existência desconhecia) e que presumo ser de um nadador ilhéu...?[perdeu-se a interrogação entre as reticências!]
Corrige-me se estou a delirar!
Ah e obrigado por este magnífico post!
PS: Nunca gostei especialmente dos painéis... ou seja, "percepções distintas"!
Obrigado Luís pelo brilhante post!
Emocionaram-me muito as tuas palavras. Mas o meu "Rochedo" é uma árvore, por acaso bem bonita. Todos os dias passo por ela e, descubro sempre um novo pormenor, novo episódio revivo. É bom ter memória...deve mesmo haver Céu! Senão, como seria possível de nos lembrar de tanta coisa?
Um grande abraço.
ZN.
também eu tenho saudades da "minha" avó T.
o link do blog do nadador ilhéu é:
http://lacoincidenza.blogspot.com/
e este:
http://canetazul.blogspot.com/
têm estado parados ultimamente...
ps. gnd post primo!
Como não quebrou? Quebrou em mil pedrinhas que alguns levaram nos bolsos o que, se quiseres, é o menor dos males. Mas não digas que não quebrou...
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Mesmo que o rochedo tenha quebrado, obrigada Luís por nos lembrares que nós "os todos" somos a argamassa que o permite reconstruir!
Cada dia escreves melhor, meu amigo.
Excelente post!
Pena não partilhar a mesma opinião.
O "rochedo" desapareceu para SEMPRE!
Ficaram algumas pedrinhas desse rochedo, que foram partilhadas por quem as quis levar.
Ficam as memórias...
Mas acima de tudo, ficam as saudades e a mágoa de não ter conseguido dar um final feliz ao "rochedo".
GPL
Hoje vejo uma casa "despida" já não sinto "o calor" que tanto queria.
Mal fechava a porta atrás de mim todo gélido corredor desaparecia, transportava-me para um mundo "distante"..
Sozinho não puderei ser mais o miúdo que era ao entrar naquela casa..
Sozinho "a casa" não mais é que fria e incómoda, uma biblioteca perdida, à procura de um lar..
Estranho, só consigo a voltar a sentir o carinho que sentia naquela casa..
Quando sinto o sotaque açoriano, com um conselho conimbricense, um sorriso alentejano, o ritmo lisboeta, a timidez setubalense, a ironia do oeste e o sol algarvio.
No fundo quando se juntam todas as pedrinhas voltamos a ter um rochedo.
A "casa", que também já foi a minha, não poderá ser para mim um apartamento T4, com paredes exteriores de alvenaria e caixa de ar interior, com tubagens renovadas de aço INOX, a rondar os 40/50 anos, com uma área bruta de +/- 200km2, 2 wc's e 1 varanda..
A minha imagem é outra.
E é assim que pretendo recordar..
O rochedo partiu, pode ser.
O tempo passou. O vento, a chuva, o frio.. mas em breve o rochedo sera uma bonita praia!
pode ser diferente, pode ser dificil, pode ser solitario, pode ser angustiante, pode dar trabalho e exigir esforço... mas é o minimo que podemos fazer de um rochedo tão importante.
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