Monday, October 20, 2008

"Muito simples"

Não sei se em virtude da crise, ou de uma anémica falta de originalidade de que, nos dias que correm, padece boa parte dos nossos compatriotas - ou, ainda, de um certo saudosismo de um fantasiado mito salazarista (onde tal política, alegadamente, tinha vários seguidores), Portugal foi invadido pela mais irritante das modas:

tudo se quer "muito simples", e "muito simples" é óptimo.

Vejamos alguns exemplos concretos.
1) a Bernardina Augusta (ups! este nome não pode ser, pois não é "muito simples" - reformemos: a Ana) faz anos, e eu estou com uma brutal preguiça de procurar uma prenda para a dita. Ora, tenho TANTO que fazer! Trabalhar até às 5, imaginem! E tudo isto por culpa do Sócrates! E ir para casa, fazer o jantar (é pizza, congelada, de fiambre e queijo, com alface - tudo "muito simples") e ver telenovela (adoro, é "muito simples" seguir os guiões, a agora há tantas com pessoas "muito simples", como qualquer português deve ser). Se tiver sorte, ainda leio umas páginas de um livro qualquer. Gosto da Margarida Rebelo Pinto: não é que a rapariga, à primeira vista, seja "muito simples", mas, após uma análise breve, e também "muito simples", constato, com inexcedível alegria, que a sua cabeça o é, e que os argumentos que de lá brotam também o são. Ah! E se há coisa no mundo que gosto é de ver aquele programa do gordo Malato. Ele é mesmo, mesmo "muito simples". Nada de presunções, parece mesmo o sobrinho da minha vizinha. Ah, é disto que o povo precisa, gente "muito simples" para imitar.
Mas voltando à Bernardina (ups! Ana): acho que lhe vou comprar um copo azul ("muito simples", sem qualquer desenho) para pôr lápis. Vai ficar tão bonito! E com sorte levo-lhe um ramo de flores - tudo "muito simples", umas florinhas brancas e discretas.

2) uns amigos vêm jantar cá a casa. Uf, que seca! Não vou conseguir ver a Lucy de manhã! A moça, apesar de usar aquelas roupas um bocadinho deslocadas, é mesmo"muito simples". Vive com a mãe, é muito frugal, recolhe certinha às 21.30 da noite. Que bonita, que esperta, que simples! Mas já sei! Organizarei um meeting "muito simples". Tudo come na cozinha, como em casa da Avó Rosária, lá nas Meãs do Meio (bom, o problema é que a casa da Avó era uma cozinha - mas adiante!). Cozo esparguete e compro uma embalagem de sopa. Acho que vou cozer umas postas de bacalhau. Não fica lá muito bem com o esparguete, mas é "muito simples" - pelo que é optimo!
Como ontem estive com insónias, aproveitei para fazer um bolo - "muito simples", claro está! Um bonito pão de ló, com tanta água que até dá gosto. Dá-se-lhe uma trinca e sabe a água. Venturoso pão de ló, tão simples! A minha prima também o faz, e decora-o com fios de ovos. Não vou mentir, fica bom: mas dá tanto trabalho, e depois, aquela mistura de cores, texturas, sabores.... não, não pode ser! Lá se ia o "muito simples"!

3) tenho de ir comprar um par de coisas para renovar o meu guarda roupa. Deus meu, é tudo tão berrante, colorido, a querer dar nas vistas... e eu que queria tanto ser transparente, ou cinzento, ou cor-de-burro-quando-foge. Isto sim, é ser "muito simples".

4) estou feliz! Tenho uma casa nova, num prédio velho recuperado, no centro da cidade. A Câmara pintou o exterior de azul forte, imagem! Dizem que era assim que era, de início, e que dá outra vida à cidade. Que vergonha! E eu que sonhava com uma casinha branquinha, "muito simples"! Mas o interior ficou como eu queria! Realizei o meu sonho: ter uma casa EXACTAMENTE IGUAL a todas as pessoas da minha idade e geração! É tão bom! Tudo "muito simples": um sofá, uma prateleira na parede, a loucura (ups! e que loucura!) de ter uma parede de cor diferente (ainda pensei em forrá-la com um papel, também "muito simples", mas achei demais)...
Naturalmente, recorri, no que a tudo que está dentro de portas concerne, ao arquétipo do "muito simples": IKEA.
É tão bom ser igual, invisível... é tão bom levar uma vida apagada! É tão bom ser "muito simples", com poucos livros e ideias, com roupagens iguais a todos com que me cruzo, com um cantinho do mais simples que há, onde não há um sinal que o identifique como sendo meu!
Para quê desperdiçar energia e puxar pela tola? Quem é que se vai preocupar com isso? Ainda arranjo problemas!

Para quê lembrar que a alma do meu país está tão longe dessa maneira pardacenta de viver e ver o mundo? Que, na verdade, é curiosa e predisposta a ver o que há para lá da barreira? E que é exagerada, bizarra, até, por vezes, aparolada? Deus me livre! Os brasileiros que fiquem com esses exageros! Cortem as palmeiras dos jardins e plantem bonitas cevadilhas, ou mesmo couves - é mais paroquial, "muito simples"!

Escondam o que realmente somos, e brindem comigo à inerte "normalidade".
Mas com ice tea, ok? Já se sabe - tem de ser "muito simples"!

ps: naturalmente, não gosto nada deste blog colorido e exagerado, nem do seu escrivão de cabelo espetado, e tão pouco adepto do "muito simples"!

1 Comments:

At 8:40 AM, Blogger RR said...

Genial.

 

Post a Comment

<< Home