Para o 2º andar
Costuma dizer alguém que nos é muito próximo, quando reincidimos em algo que de alguma forma transgride uma regra, e em jeito de aviso veemente (porque se chegarmos ao 3º piso o resultado pode já não nos ser tão agradável) que "Duas vezes é já para o segundo andar".
Bom, correndo esse risco, uma vez mais quebro uma das normas que vão guiando estes Prazos, e transcrevo uma crónica (a última) de Paulo Varela Gomes. E isto por duas razões: não só a considero um belo texto, como sinto (é-me impossível não fazer) uma grande simpatia e afinidade com o rapaz que o autor cita!
LOL
"Mas isto é muito feio", disse-me, engasgado de surpresa, um estudante universitário português bastante qualificado, umas semanas depois de chegar a Goa.E é. Muito feio. Quase tudo quanto se construiu em Goa nos últimos 40 anos é horrendo, as cidades e povoações, as construções ao longo das estradas principais, os edifícios públicos e privados, as novas casas. Em particular nas áreas mais tocadas pelo turismo, ao longo das praias, Goa é hoje um sítio sem qualquer encanto, uma espécie de Reboleira nos trópicos. O estribilho dos promotores turísticos acerca da lovely Goa com as suas pristine beaches cheias de swinging palms, e as cuidadosas fotografias que publicam "reenquadrando" o horror, é aldrabice destinada a hipnotizar quem não conhece as mais famosas praias tropicais de todo o mundo. Destina-se, antes de mais, ao turismo interno indiano: Calangute, um dos mais devastados sítios da costa de Goa, até não está mal para quem se habituou a Ludhiana. Percorrendo as estradas interiores e as aldeias intocadas pela invasão imobiliária, encontramos ainda paisagens encantadoras: subsistem muitas casas de extraordinária qualidade média construídas no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Belos campos cultivados. Igrejas e templos. Respiração, verde e pitoresco. Longe do horror da costa, da catástrofe das povoações, reconhecemos a Goa descrita encantadamente por viajantes franceses e ingleses desde o século XVIII. De facto, foi a partir de então, e por esses observadores, que a beleza de Goa foi "descoberta" ou, melhor, construída como uma ideia que subsistiu até hoje. Tratava-se da Goa aldeã (não se pensava então em praias), ou seja, da paisagem habitada, feita do branco da cal, do vermelho das telhas e da pedra ferrosa, do verde dos coqueiros. Os viajantes norte-europeus viram em Goa, como, aliás, em outras áreas de influência portuguesa na Índia, um Mediterrâneo católico e camponês em cenário oriental.As praias de Goa só foram inventadas como produto de consumo turístico no final da década de 1960. Os goeses, naturalmente, iam à praia desde o século XIX à maneira dos europeus: na "estação", para apanhar fresco e socializar, vestidos da cabeça aos pés. Goa entrou no circuito mundial como um lugar "de praia" com os hippies, ou seja, os jovens ocidentais que se fixaram na costa de Goa porque aqui havia alguma da qualidade da civilização europeia e também "a Índia" (na forma de alguns templos e muitas vacas). Foi o começo do fim. Os norte-europeus, que tinham inventado a beleza de Goa no século XVIII, puseram-lhe termo no final do século XX. Tanto num caso como noutro porque não viram em Goa senão aquilo que a sua própria cultura lhes permitiu ver: primeiro, uma imagem mítica do Mediterrâneo, depois uma ideia, igualmente mitificada, da "praia tropical". Com os dois mitos se fabricou a Goa turística e com esta se destruiu a beleza de Goa. Resta o discurso vazio da publicidade e alguns goeses a tentarem salvar a dignidade de um território desfeito.
1 Comments:
Por favor... agora a culpa da destruição da paisagem de Goa cabe aos "hippies"!! Quem assiste impávido à delapidação da paisagem e ao saque do património não é,
pelo menos, conivente!
Por outro lado é de uma crueldade incrível querer que a Goa aldeã permaneça intocável ao longo dos séculos (tipo reserva colonial) e, simultaneamente, viver com todo o conforto europeu (ar condicionado, internet, etc).
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