Num belo texto recentemente dado à estampa, como é habitual às quartas, no “Público” – “Macaulay” –, PVG discorre larga e amargamente sobre a presença britânica na Índia oitocentista, bem como sobre a herança que essa mesma nação deixou (de forma ainda hoje tão palpável) no subcontinente.
Neste estado de coisas, PVG chama, com razão, à colação a tão polémica quão célebre obra de R.F. Burton – o viajante que, em meados do século XIX, inflamado de ardores britânicos e protestantes, descreveu uma Goa (e um Portugal, na expressão feliz de PVG) “pobre, decadente, tropical, de pele escura e uniforme roto”.
O livro é, repete-se, bem conhecido por todos aqueles que estudam os restos (mais ou menos grandiosos) daquela que foi, mais do que a cabeça de um “Estado da Índia” que se foi decompondo ao longo das centúrias, o foco principal de um delirante e orientalizado sonho colectivo luso. Por isso é tão citado, por isso é tão célebre, por isso é tão mal amado. Mal cheguei a Goa (lembro-me bem), falaram-me logo dele na Central Library. Conheceria eu essa obra ímpar? Lera já as suas cruas descrições? Acalmei as hostes demonstrando familiaridade com o velho Burton.
O que acho eu do trabalho de Burton? Que opiniões posso eu ter sobre as (afinal) escassas páginas que consagra a Goa?
Disfarçado sob um título idílico (“Goa and the blue mountains”), o nosso inglês parece desdenhar de tudo.
Vejamos apenas um par de exemplos:
1) Confrontado, à chegada, com um bizarro militar, logo desconfia do seu (aparente) mau carácter, uniforme arruinado e tabaco de segunda. Senhores! Basta lermos a muita documentação provinda do século XIX que ainda nos chegou às mãos para vermos o estado das nossas forças e milícias na região naquela época. A descrição do tal tropa relaxado nada traz de novo ao que se sabe desde há muito. Uma das chagas da Goa oitocentista foi, indubitavelmente, o seu exército.
Mas Burton não sabia que uma enorme reformulação vinha sendo pensada e testada. Não conhecia Goa suficientemente bem.
2) Ao penetrar no Mandovy (o outro Tejo que usualmente se cantava), as paragens que tanto orgulhavam os portugueses (e goeses) mais não lhe pareciam do que palmares intermináveis, entre os quais, de quando a quando, se vislumbravam míseras povoações. O texto é expressivo qb: “ Perched upon the topmast angle of out penthouse, we strain our eyes in search of the tall buildings and crowded ways that denote a capital: we can see nought but a forest of lanky cocoa-nut trees, whose stems are apparently growing out of a multitude of small hovels. Can this be Goa?”. E espanta-se com a solenidade com que eram indicadas as localidades por que passavam, que tanto significado pareciam ter para os seus anfitriões: “this is the village of Verim, that St Agnes, and proceeds to display his store of topographical lore by naming or chrstening every dirty little mass of hut and white-washed spire that meets the eye”. Pangim começa por ser uma decepção, se bem que (após uma péssima noite, mal dormida e com inúmeras visitas de mosquitos indesejáveis – e quem não sabe o que isso é, depois de conhecer Goa? Mesmo Gilberto Freyre, na sua acção propagandística descarada, não resistiu em criticar, cem anos depois, as péssimas condições de alojamento com que se deparou) cedo se rende aos ares da pequena urbe e à beleza melancólica dos seus palmares.
Mas – e lancemos mão à palmatória – nós, os que gostamos de Goa e cedemos à sua mística, ainda não somos assim? Não descrevemos, perante o olhar impávido de visitantes que não conseguem ver para além de casebres, palmeiras, cães esfaimados, velhas igrejas e muitas gralhas, as maravilhas dos edifícios, as histórias e historietas que temos por fascinantes? Não apontamos para a mísera Betim e relembramos a grandeza da casa dos catecúmenos (seria assim TÃO grande? Ou era-o para nós, apenas?)? Não mostramos os Reis Magos, onde os vice-reis paravam antes da sua entrada oficial e da sua saída final, como algo de extraordinário, e não um velho forte e uma igreja de bom tamanho?
Não passamos por Chorão e descrevemos as maravilhas do que lá houve, do Seminário, do centro de estudos... quando já nada existe?
Não entramos na Casa Professa do Bom Jesus falando de tesouros que já lá não estão?
Não sei porque diabo foram mostrar Britona a Burton (talvez pela proximidade da Penha de França)... Britona pode ser muito histórica e cheia de memórias. Mas eu morei lá durante dois meses – e acreditem que, para quem não quer ou não sabe ver para além da miséria e da indigência daquele lugarejo de pescadores (como era manifestamente o caso de Burton), tudo pareceria, decerto, assaz deprimente!
Mas Burton não sabia que Goa é acima de tudo o resultado da projecção da nossa memória colectiva. Não conhecia Goa suficientemente bem.
3) Burton sente um prazer muito evidente em sublinhar as inúmeras falhas que acredita encontrar em dois segmentos da sociedade: os “descendentes” e os nativos “aportuguesados”. Ambos sofrem, para o nosso radical protestante, de um gravíssimo duplo mal comum: são católicos (ah! Coisa terrível!) e moram demasiado perto um dos outros! (ah! Terrível promiscuidade!). Os indianos são indianos (e, ainda por cima, católicos), pelo que são casos perdidos. Os portugueses instalados na Índia, por seu lado, são também fatalmente católicos... embora brancos. Por isso, de acordo com o raciocínio de Burton, talvez uma ou duas míseras posições acima dos “naturais conversos” que enxameavam Pangim. Mas o célebre viajante logo engendra forma de os rebaixar à mediocridade de que os considerava merecedores: se não são nativos, são, com certeza, portadores de sangues misturados (há-de haver, com tantos anos na Índia, algum “coito danado” entre os seus avoengos).
E aqui caímos uma vez mais na recorrente quaestio da “mistura” de sangues? Houve? Não houve? Muitos acham que sim, outros tantos não perfilham tal tese. Perfilando-se na primeira tendência, S.M. escreveu um belo comentário ao artigo de PVG a que nos reportámos nas suas magníficas JAIPURIANAS (http://jaipurianas.blogspot.com).
Eu sou mais desconfiado, no que a este assunto toca: enquanto não tiver provas suficientes na minha mão de que as famílias das castas superiores se mesclaram, efectivamente, com portugueses (e não estou a falar de uma caldeação civilizacional, bem entendido), enquanto todos os documentos que vou exumando em tantos lugares diferentes me indicarem precisamente o contrário, mantenho-me céptico.
Isto por acreditar que em Goa, mais do que uma regular transmissão de carga genética, o que se empreendeu foi a construção “intelectual” (artificial, se quiserem) de uma sociedade única. Muito com base na religião (com base no catolicismo que Burton tanto odeia e teme – se calhar por perceber que ele foi também a argamassa que impediu que o “edifício goês” se mantivesse bastante mais tempo do que poderia imaginar, mesmo que em difícil equilíbrio), mas também numa cultura partilhada que subsiste até hoje.
Burton não teve oportunidade – nem tempo, sequer – para conhecer e compreender essa sociedade fascinante. Essa gente, que – branca, castanha ou apenas bronzeada (sim, sim, ou avermelhada!) – é, afinal, à sombra dos coqueiros e das velhas e semi-desmoronadas igrejas, a alma daquele minúsculo Estado.
Por isso mesmo, Burton não compreendeu Goa. Viu apenas os detritos e a decadência.
Por isso mesmo – por Burton, em Goa, se ter mostrado tão pouco curioso, tão pouco arguto, tão horrivelmente provinciano e orientado – é especialmente delicioso o horror com que que recebe, por parte de Caetano da Gama (de Ribandar, que será decerto da velha família brâmane que usava tal apelido) a informação de que o mesmo era “lineal descendant from the Gran Capitão”!
Um brâmane – um INDIANO! – descendente de Vasco da Gama?! Burton nem queria acreditar – para si, era o sinal derradeiro da queda dos portugueses. Até os descendentes dos grandes conquistadores se misturavam com os nativos!
Dá vontade de rir ao pensar na reacção de Burton.
Tal como daria, seguramente, se o Gama goês tivesse percebido que o inglês com que ele se mostrara tão simpático e cortês duvidava da pureza dos seus maiores, maculando a sua genealogia com sangue de outra casta!
Descendente de Gama... certamente, numa certa maneira de entender o mundo, numa certa maneira de entender Goa. Nada de contactos de sangue - tudo no domínio das ideias...
Numa maneira, já se sabe, que Burton (por falta de tempo e vontade) talvez não soubesse compreender.
2 Comments:
meu Caro,
apesar das cores, que talvez distraem mais do que ajudam, li o teu texto com interesse.
sabemos que os BCs não são dados a misturas. mas essa casta representa uma percentegam mínima da população.
alargando o leque a todas as castas e religiões que existiriam em Goa, haveria mesclagens, mais forçadas ou menos forçadas. Talvez não fosse generalizado...talvez fosse um assunto abafado, escondido...mas os soldados portugueses tinham a carne fraca, não só em Goa como no resto do império.
e os próprios ingleses, que mais tarde viriam a implantar tão rígida segregação, também passaram por uma fase de mistura - o resultado prático é a célebre comunidade dos anglo-indians.
e até essa personagem do Burton teve as suas amantes indianas em Bombaim e acabou por se casar com uma católica...
e poderia fechar este comment com um chavão...
mas fica apenas um abraço
Jaipas,
Concordo, naturalmente, com o que dizes. É inevitável que inúmeros cruzamentos tenham tido lugar em Goa e em todo o espaço em que se tenha sentido um mínimo de influência portuguesa. Os militares são um bom exemplo - e das suas incursões "amorosas" (chamemos-lhes assim) forçando nativas existem vários depoimentos.
Curiosamente, fala-se invariavelmente na situação em que deixam a mulher "desonrada" - que não raro se vê (pelo menos a crer nos relatórios e queixas que eram remetidos) compelida a deixar os seus e uma situação lamentável a todos os níveis. Mas quase nunca (ou nunca, mesmo) se fala das eventuais crianças que nasceriam desses encontros.
Como sabes, não tenho grande simpatia pela soldadesca lusa estacionada no Estado da Índia entre finais do sec. XVIII e a extinção (ou grande reformulação) do Exército local.
Em paralelo, quem percorrer com atenção os livros de registo das freguesias de Goa (e estamos a falar apenas do segmento da população que ligava a tais burocracias), deparamo-se com inumeros filhos de pais incognitos.
Tudo indícios, é verdade - mas deixando um espaço nebuloso demasiado amplo.
Quanto aos BCs, que tanto prezo, sei bem que são uma pequena franja da população goesa - franja determinante, acredito firmemente, mas mais pelo(s) seu(s) posicionamento(s) do que pelo número de "efectivos" que contava.
É a eles que me refiro quando relembro, no texto, Caetano da Gama.
É a eles, e só a eles, que - por assim ser - se aplicam as frases finais do mesmo.
Referi-me à perspectiva de uma elite (numericamente minoritária, é certo). Elite a que pertenceria Caetano da Gama e creio que mesmo João Tomás de Sousa (nome que o próprio Burton considera ser entendido como um laivo de aristocracia)
A elite que poderia produzir gente que, se se considerava descendente de reis e deuses, e mesmo de um rei mago ... porque não também do (bem mais modesto) descobridor português?
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